O que Gabo sonhou antes de morrer?

Atualizado em 19 de novembro de 2014 às 16:10

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Como se conta um conto, A bendita mania de contar e Alugo-me para sonhar são os três manuais produzidos por Gabriel Garcia Marques – o Gabo – para contar a experiência das oficinas de roteiro de cinema conduzidas por ele na Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, que ele criou em Cuba em 1986 por meio da sua fundação.

Premio Nobel de literatura em 1982, o recém falecido Gabo foi também contista, ensaísta, crítico e roteirista de cinema. Em Como se conta um conto, o autor de Crônica de Uma Morte Anunciada nos ensina – entre tantas outras coisas – a contar a morte. Encontro em Samarra II é um exercício de criação literária em que Gabo e seus alunos, incluindo o brasileiro Roberto Gervitz – roteirista e diretor de Feliz Ano Velho – constroem um personagem a caminho da morte.

Encontro em Samarra – o conto original árabe, recontado por Somerset Maugham – narra a história do servo de um mercador de Bagdá que tenta escapar do encontro com a morte escondendo-se na vizinha Samarra. Já o personagem de Gabo e seus alunos não está fugindo da morte, corre ao encontro dela, até Gabo salvar sua vida com um milagre.

O roteiro proposto é de um curta metragem. Meia hora. Um homem elegantemente vestido à moda tradicional dos “cachacos” – burgueses de Bogotá – acaba de ser desiludido pelos médicos. Sai do consultório atordoado, sem destino. Gabo sugere que ele tome o primeiro ônibus, para qualquer lugar. No caminho ele dorme e sonha que encontra um bela mulher. Ao descer do ônibus, o sonho se realiza. Bate na porta de uma casa e atende uma linda mulher, negra e sensual, por quem ele se apaixonaria. Para Roberto Gervitz, ela seria a Morte. “É como se ele encontrasse a Morte disfarçada de Vida, o que tem uma força especial, a força do absurdo”, diz Gabo.

Eles discutem qual doença ele teria. Poderia ser cirrose? Se fosse, ele se arrependeria de ter deixado de beber para não morrer. Gabo cogita que ele entre num bar e confesse toda sua história ao balconista. Alguém sugere um câncer. Gabo: “Como? Quimioterapia para ficar sem cabelo e todo o resto? Pra quê? Danem-se os tratamentos. Uma reação assim seria boa! É formidável que ele se livre da morte que a Morte lhe preparou burocraticamente, e que ele reaja buscando uma outra morte.”

E continua: “antes de tudo temos que saber quem é esse tipo que bate à porta da morte. Por que enquanto se imagina que ele vai encontrar a felicidade ali, mesmo por pouco tempo, o que ele encontra é a morte. Uma morte antecipada, sua morte antecipando-se à Morte.”

A turma segue manipulando a história desse personagem como marionete, ou boneco de massinha, até perceberem que ele não precisa morrer.

“Se conseguirmos descobrir o mecanismo que o conduz à morte, o filme está completo, não falta nada mais”, diz o professor. “Uma morte grandiosa, muito diferente daquela no hospital, entre radiações e quimioterapias”, acrescenta mais adiante.

Aos poucos o personagem vai crescendo de importância. Deixa de ser um fugitivo do destino para se converter num herói e, logo em seguida, em santo. Torna-se, então, um milagreiro falso, e assim escapa da morte. Nada mais latinoamericano:

“Isso, uma aparição. Um santo. Vemos a imagem do recém chegado nos altares de todas as casas. Com as velas acendidas. Estavam velando o santo e, de repente, aparece o sujeito, que é igual a ele.”

“Não precisa mais morrer. O filme pode acabar no primeiro milagre.”

“Ninguém sabe como nem de onde ele veio. É um filme muito bonito. Melhor do que imaginamos.”

“Ele antes ia morrer por que não sabíamos o que fazer com ele.”

“A morte foi um simples pretexto para faze-lo viajar. O que interessa é ver como esse sujeito, que teve uma vida tão cinza, chega a viver uma vida de santo.”

Em Crônica de Uma Morte Anunciada, Gabo descreve assim um outro encontro com a morte:

“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h 30m da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sono, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros. “Sempre sonhava com árvores”, disse-me sua mãe 27 anos depois, evocando os pormenores daquela segunda-feira ingrata.”

Ao contrário do burocrata bogotano e do servo árabe, Gabo não virou santo, nem viveu burocraticamente. Encontrou a Morte, gloriosamente, na data e no local marcados.

O roteiro de seu sonho nesse dia ainda está por ser escrito.

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Jura Passos é jornalista. Formou-se na Escola de Comunicações e Artes da USP e fez especialização em comunicação e políticas públicas no Hubert H. Humphrey Institute of Public Affairs da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos. É um eterno aprendiz de capoeira, samba e maracatu e adora viajar de bicicleta por ai, menos em São Paulo.