O sol ilumina a gelada capital mundial da bicicleta: meu relato de viagem em Copenhague

Atualizado em 20 de julho de 2013 às 9:07

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Os trens em Copenhague têm um vagão especial para quem viaja com bicicleta

COPENHAGUE É A terra de Hans Christian Andersen, Soren Kierkegaard — e da bicicleta.

A cidade anda de bicicleta. Um em cada três habitantes vai trabalhar pedalando. O clima ajuda, a topografia plana ajuda, a consciência ecológica ajuda. Há um espaço exclusivo nas ruas para as bicicletas, entre a calçada dos pedestres e as avenidas onde giram, com mais rapidez do que eu imaginava, os carros. Um deles buzina para mim num farol que acabara de ficar vermelho para pedestres, numa impaciência deselegante que não se espera na Dinamarca. Por um segundo olho feio para o motorista e ele para mim. Faço sinal com as mãos para que ele espere. Ele faz um aceno pouco amistoso para que eu passe.

É a segunda vez em dois dias que troca olhares e gestos bruscos com motoristas dinamarqueses. A outra vez foi com uma gorda mal encarada de meia idade que deveria estar andando de bicicleta.

É um sábado deslumbrante de primavera em Copenhague. Céu sem nuvens, sol sem intermediários sobre a cidade. As ruas lotadas de pedestres e ciclistas. Uma das vantagens de morar num lugar habitualmente frio é que você aprende a dar valor ao sol. Penso nisso sentado numa espreguiçadeira pública colocada ao lado da Biblioteca Real de Copenhague, de frente para as águas de um canal. É um prédio de design atrevido. Parece a tela de um computador, negro e fino.

Fico mais ou menos uma hora ali na espreguiçadeira, em meio a um grupo de nativos interessados, como eu, em tomar sol e ler num cenário belíssimo. A parede da biblioteca cerceia o vento, e sinto um calor parecido com o de um dia ameno de primavera no Brasil.

Eu amo Nova York consagrou o coração no lugar do verbo. Em Copenhague a imagem, para a mesma mensagem, é uma bicicleta no lugar do coração.

Não seria bom ver uma coisa dessas em São Paulo?

Você vê famílias passeando de bicicleta: pai, mãe, crianças. Você vê pais e mães carregando bebês nas bicicletas em banquinhos com cinto de segurança. Você vê velhas e velhos pedalando. Você vê bicicletas de aluguel para os turistas, com mapas da cidade em cima do guidão. Você vê, numa escadaria, uma caneleta de metal permitir a descida suave de uma bicicleta pelas mãos do dono. Você vê toda sorte de modelos em vários estacionamentos na cidade. Você vê, num farol central, um marcador digital anunciar o número de bicicletas que passaram por lá. Eram cerca de 2 700 ao meio dia.

Copenhague é uma bicicleta.

Um vagão reservado para bicicletas
Um vagão reservado para bicicletas

O pedestre em Copenhague tem que prestar atenção tanto nos ciclistas como nos motoristas. Ele é bem orientado. Nos semáforos principais, fora as luzes habituais, você vê a contagem regressiva de segundos durante os quais é o momento de atravessar. Trinta segundos e depois 60 para os carros. O melhor lugar para andar é uma exatamente uma rua feita apenas para andar, a Walking Street, como todos a chamam.

É uma rua cheia de lojas de todo tipo e preços, restaurantes de todos os estilos, gente que vai e vem o tempo inteiro. É uma zona livre de carros e de bicicletas. Os ciclistas têm que empurrar a sua caso andem por lá. Uma das atrações da rua são as estátuas humanas. São artistas que fazem muito bem o papel de estátuas. Gostou? Deixe uma moeda. Quer tirar uma foto? Deixe duas. É uma despesa bem feita.

Copenhague tem o melhor pão doce de creme que comi na minha vida, e posso garantir que não foram poucos os que tracei em mais de meio século de faminta existência. Você o encontra em toda parte, bem como cabelos cor de neve na cabeça das pessoas. Naturais, não tingidos, e oriundos dos ancentrais vikings.

É um povo bonito, desempenado, lépido. Longevo: a expectativa de vida é de 78 anos, seis a mais que no Brasil.  E, tanto quanto se pode ser neste vale de lágrimas, feliz. Um estudo internacional elegeu a Dinamarca como o país mais feliz do mundo. Escrevi sobre isso. Você pode ler meu texto aqui. A língua é estranha. Tenho ainda que entender o “o” que tem um risco no meio. Mas o inglês é falado por todo mundo. Não há hipótese de você ir tomar um café na linda Estação Central e topar com um balconista que não fale inglês.

Fiz um vídeo caseiro na cidade, mas pensando bem é melhor que você veja este do Lonely Planet. O artigo continua depois dele.

A Dinamarca é uma terra única sob vários aspectos. É igualitária na essência, socialmente avançadíssima, fria em boa parte do ano e gelada no resto. Neve na primavera é privilégio de terras glaciais, nas quais trabalhar é mais fácil que sob o sol cruel dos trópicos.

É também um lugar libertário por excelência, o que às vezes leva a paradoxos. Exemplo: a liberdade de expressão permite a veiculação de desenhos de pornografia infantil. Os políticos estão discutindo isso. Um deles disse que, se não for comprovado que os desenhos estimulam os pedófilos a praticar crimes, será difícil mudar a legislação.

Liberdade de expressão não é licença para publicar qualquer coisa. Determinadas ações não podem ser protegidas pelo conceito abstrato de liberdade de expressão. A pornografia infantil animada, por exemplo. Ela é feita para excitar predadores sexuais que têm fantasias com crianças. Os incitamentos ao extermínio dos judeus feitos pelos na Alemanha mesmo antes da ascensão de Hitler foram tolerados em nome da liberdade de expressão. É certo isso?

Não.

Há que ter limites, Hoje, no Reino Unido, glorificar o terror é motivo para você ser preso.

Cometem-se muitas barbaridades sob a sombra da liberdade de expressão. Mein Kampf, a obra assassina de Hitler, é um desses casos. Hitler pregava abertamente matar os judeus. Tudo bem publicar?

Penso nisso, na espreguiçadeira da Biblioteca Real.

E acho que a Dinamarca é avançada demais para interpretar a liberdade de expressão de um forma tão literal, permissiva e perigosa.

Agora, licença que é tempo de aproveitar, como todo mundo em Copenhague, essa mercadoria tão rara e tão cara chamada sol.

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