O truque da “Boca Livre”: não haverá CPI da Rouanet porque a Globo fatura com a lei. Por Kiko Nogueira

Atualizado em 23 de novembro de 2016 às 9:34
O casamento bancado pela Lei Rouanet
O casamento bancado pela Lei Rouanet

 

Uma nova operação da PF, como de hábito cheia de som e fúria, chamada Boca Livre, desbaratou uma quadrilha que atuou por quase 20 anos e conseguiu aprovação de R$ 180 milhões em fraudes da Lei Rouanet.

Os donos da Bellini Cultural e um produtor foram presos em São Paulo. A história mais saborosa, explorada à exaustão por razões óbvias, foi um casamento em Jurerê Internacional, praia badalada em Santa Catarina, bancada pela Rouanet (Aécio, freqüentador assíduo, conheceu lá a mulher Letícia Weber).

O vídeo da festa viralizou, a vida do casal foi escarafunchada. O ministro da Justiça Alexandre Moraes deu entrevistas em que exibiu seu wit, seu humor refinado. “No meu casamento, eu paguei. Por sinal, fiquei pagando um ano ainda”, brincou. A Polícia Federal responsabilizou o Ministério da Cultura — a gestão anterior, naturalmente, do PT.

A Rouanet é um prato cheio para a roubalheira. O próprio ex-ministro Juca Ferreira já admitiu seus problemas (o que leva à pergunta: por que não fez nada?). Que sentido tem o Rock In Rio, por exemplo, apelar para a lei?

A histeria coletiva que se almejava aconteceu: a nação coxa compareceu em peso à internet para denunciar os artistas metralhas e suas “tetas”, ou algo do gênero. Esquerdopatas pendurados no estado.

Infelizmente para eles, não estão na Boca Livre Chico Buarque, Marieta Severo, José de Abreu, Letícia Sabatella. Também não acharam José Dirceu, Dilma, Lula, Genoíno.

Há, sim, empresas grandes e consolidadas envolvidas com outras empresas e a razão é simples: são elas que, ao fim e ao cabo, faturam com a isenção fiscal da Lei Rouanet, legal ou ilegalmente. Não é o Gregório Duvivier.

É preciso virar a Lei Rouanet do avesso. Mas isso não vai acontecer.

Recentemente, depois da publicação de uma lista das empresas que mais captaram em 2015, surgiu a possibilidade de uma CPI. O ministro da Cultura, Marcelo Calero, foi à Câmara tentar convencer deputados a desistirem da ideia. Ela foi protocolada, mas não foi instalada.

Se essa investigação fosse levada a sério, fazer-se-ia (Temer dixit) necessário entrar nas contas de gigantes como Itaú Cultural, Natura — e a Globo, que captou 147 milhões de reais, em valores não atualizados, apenas nos anos Lula e Dilma.

A Globo gosta da Rouanet. Por isso a matéria no Jornal Nacional sobre a Boca Livre com viés totalmente favorável à lei, com depoimentos de Odilon Wagner, ator e vice-presidente da Associação de Produtores Teatrais Independentes, e de outros falando de sua importância para as artes nacionais.

Ninguém vai mexer nisso de verdade. Histórias rocambolescas de casórios continuarão sendo atiradas como ossos aos cachorros, que continuarão vendo o espantalho do Chico e de outros comunistas. A Globo vai continuar cobrindo a palhaçada porque sabe que desse ponto não passará.

Reproduzo o texto que publiquei na semana passada:

 

A Globo, através da Fundação Roberto Marinho, captou R$ 147 858 580 desde 2003, primeiro ano do governo Lula, até 2015.

Os valores não foram atualizados.

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A FRM foi criada nos anos 70 e é uma instituição privada, teoricamente sem fins lucrativos, voltada, diz o site oficial, para “a educação e o conhecimento”. Ela “se dedica à concepção e implementação de museus e exposições”.

Entre outros projetos, estão sob seus cuidados o Museu do Amanhã, o Museu de Arte do Rio, a nova sede do MIS no Rio e o Museu da Língua Portuguesa.

O DCM teve acesso a dados do Ministério da Cultura. A fundação é apontada na linha dos “maiores proponentes”.

O ano em que mais se captou foi 2011: 35,2 milhões de reais. A destinação era a revitalização da Igreja Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, o Paço do Frevo, o MIS e o Museu de Arte do Rio – Mar, todos no Rio de Janeiro. 

O MIS, sozinho, abocanhou 20,7 milhões.

Refinando, chega-se aos “incentivadores”, como se vê abaixo:

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Quem mais doou, segundo a planilha, foi a Globosat, com 9,5 milhões, seguida da Globo Comunicações e Participações. A Infoglobo entra com 700 mil.

Grana para fundações é restituída no Imposto de Renda. Quando a fundação é do próprio grupo, tem-se uma situação ganha-ganha. O dinheiro sai do caixa da companhia, livre do fisco, e entra numa fundação que lhe pertence. É quase lavagem. E é, em tese, legal.

Um ex-diretor do MinC ofereceu uma explicação sobre a generosidade com a Globo na aprovação de projetos. “O MinC foi leniente na gestão. Havia gente muito próxima do mercado em cargos chaves. Para se legitimar no lugar de Gilberto Gil, o ex-ministro Juca Ferreira teve de fazer várias concessões”, diz.

Ele continua: “As prestações de contas são frágeis. Não se analisa nada direito. É uma festa.”

A Lei Rouanet financia boa parte dos institutos e fundações privadas no país — do Itaú Cultural, passando pelo Alfa até o Instituto FHC. É um cipoal de altos interesses.

No final de maio, o DEM entrou com um pedido de CPI, fruto da histeria coletiva de uma direita lelé segundo a qual artistas petralhas tinham ficado milionários com o incentivo. Assim que surgirem os verdadeiros beneficiários e o partido descobrir que deu um tiro no pé, a comissão será enterrada rapidamente.

Assim como ocorreu com a investigação da Polícia Federal dos cem maiores captadores. Sergio Moro mandou anular o requerimento de um delegado ao Ministério da Transparência. Segundo Moro, a apuração, “se pertinente”, deve ser feita em um inquérito à parte na Lava Jato e com “objeto definido”.