Recheado de clichês, filme sobre “lava jato” simplifica história e achata personagens. Por Pedro Canário

Atualizado em 1 de setembro de 2017 às 17:16
“O roteiro do filme é conduzido pelo bom mocismo dos delegados, sempre por meio de declarações, quase nunca diálogos”

Publicado no ConJur por Pedro Canário

Desde o lançamento de Tropa de Elite, em 2007, o cinema brasileiro aposta em produzir retratos irreais de policiais. Recheado de clichês, Polícia Federal – a Lei é para Todos, do diretor Marcelo Antunez, é o mais novo descendente dessa linhagem.

A ConJur assistiu à pré-estreia do filme em São Paulo, a convite da Associação dos Delegados da Polícia Federal (ADPF). A sessão aconteceu no cinema do shopping Eldorado e ocupou todas as oito salas convencionais do Cinemark, com capacidade para 1.478 pessoas.

O filme conta histórias do início da operação “lava jato” sob o ponto de vista dos delegados que trabalharam nas investigações em Curitiba — e só deles. O filme tem 121 minutos e dá pra contar nos dedos as aparições de agentes da PF, que fazem breves figurações. Todos os momentos são conduzidos pelos delegados, que aproveitam espaços do roteiro para disparar chavões do senso comum, como “o sistema é feito para não funcionar”; “esse país…”; ou “me sinto como se estivesse dando socos num muro”.

Mas o nível da discussão fica claro já nos primeiros segundos de filme, quando aparece um aviso: “Os fatos aqui narrados aconteceram entre 22 de abril de 1500 e março de 2016”.

A história é conduzida pelo delegado Ivan Romano, vivido por Antonio Calloni. A personagem é uma representação do delegado Igor Romário de Paula, coordenador da “lava jato”, mas concentra episódios e conversas protagonizadas também por outros dois profissionais.

Todos os delegados e os dois procuradores da República que aparecem no filme tiveram os nomes trocados. Já os réus, investigados e delatores são chamados pelos nomes, cargos e atividades de verdade mesmo.

Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima viraram Ítalo e Pedro Henrique, e no filme são quase um casal: terminam frases um do outro e quase não aparecem separados. Marcelo Serrado é Sergio Moro e captou com precisão os trejeitos do magistrado — só não reproduziu o sotaque de Maringá (PR), terra natal de Moro, e preferiu continuar com o carioca mesmo. Como também o fizeram todos os demais atores que interpretam paranaenses.

O roteiro do filme é conduzido pelo bom mocismo dos delegados, sempre por meio de declarações, quase nunca diálogos, com falas de alto teor de responsabilidade cívica. Por isso são necessários pontos de descanso para a história ser explicada.

O delegado Ivan faz o papel de narrador — como o capitão Nascimento de Tropa de Elite —, que também faz um apanhadão dos escândalos de corrupção vividos pelo Brasil desde seu descobrimento, com direito a citação do padre Antônio Vieira e “ao mar de lama de Getúlio Vargas”, expressão usada por Carlos Lacerda quando ele estava em campanha para derrubar o adversário.

Digno de nota que a narração de Ivan vai do “mar de lama” com ilustrações do suicídio de Getúlio para casos que ficaram conhecidos durante o governo Sarney. Os fatos que aconteceram entre 1500 e 2016 tiveram uma pausa entre 1964 e 1985, justamente o período em que o país esteve sob ditadura militar.

Às vezes a narração é interrompida pelas descobertas dos delegados. O “maluco do Júlio”, que na vida real é o delegado Márcio Anselmo, vivido pelo ator Bruno Gomlevsky, é responsável pela maior parte dos avanços importantes da operação. Suas ideias geniais são sempre desenhadas numa lousa e explicadas didaticamente pela delegada Bia, personagem de Flávia Alessandra — representando a delegada Erika Marena.

Sem contar a defesa explícita do ponto de vista dos delegados sobre a “lava jato” e o nojo que eles explicitam de corrupção, o filme poderia ser uma ópera, ou um musical. Os personagens entram em cena, dão a fala e saem. E a fala quase sempre serve para expor o roteiro, nunca para desenhar algum tipo de personalidade nos protagonistas.

O único deles que tem alguma nuance é Júlio, retratado como um descontrolado, mas que precisa estar em casa com os pais, diante da doença da mãe. Os demais se limitam aos papéis que representam.

Ivan é o retrato da sensatez e da letra fria da lei. Partem sempre dele momentos de temperança em relação aos demais investigadores, ávidos para ir para cima dos corruptos. Bia é a mandona, impaciente e desiludida, autora de declarações do tipo “se for pro Supremo, acabou” ou “eles devem achar que a gente é imbecil”.

Lula é um velhaco, o barão ofendido por, tão poderoso, ser desafiado pela audácia dos representantes da lei (“quando eu for eleito de novo, vou me lembrar de cada um de vocês”, diz a um Ivan aborrecido).

Não se pode alegar surpresa com o maniqueísmo do roteiro nem com a defesa de cada passo dado pelos delegados. O filme — cuja produção custou R$ 16 milhões de investidores — conta com apoio quase irrestrito da cúpula da Polícia Federal.

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