O projeto coloca os três poderes em pé de guerra.
Costumo usar o método socrático em minhas aulas. É agressivo mas produz bons efeitos. Empurra os alunos para fora da zona de conforto e possibilita improvisações enriquecedoras.
Ao longo dos últimos anos passei a usar situações-limite para testar o raciocínio e o jogo de cintura dos estudantes nos assuntos trabalhados.
Certo dia, fiz a seguinte pergunta em sala: numa situação de crise, o Congresso Nacional poderia deliberar sobre uma Emenda Constitucional que alterasse o número de ministros do Supremo Tribunal Federal e submetesse suas decisões a um referendo?
O questionamento não surgia por acaso. Baseava-se em pelo menos dois fatos históricos.
O primeiro deles era um discurso de Theodore Roosevelt, ex-presidente dos EUA, no qual defendia que a decisão da Suprema Corte que declarasse uma lei inconstitucional deveria se sujeitar à aprovação das urnas.
O segundo fundamento da pergunta era a tensão entre Franklin Roosevelt e a Suprema Corte dos EUA na década de 30 do Século XX.
Para combater os efeitos da Grande Depressão, Roosevelt implementou uma política governamental e legislativa conhecida como “New Deal”.
Seu perfil intervencionista bateu de frente com a ideologia liberal dos juízes da corte, que anulavam as medidas uma após a outra por considerá-las inconstitucionais.
A crise evoluiu até que Roosevelt, reeleito em 1936 com 61% dos votos, considerou a ideia de aumentar o número de ministros para favorecer sua legislação reformista. Medida que não se concretizou porque a própria Suprema Corte, sentindo a pressão, mudou o tom de suas decisões.
Qual não foi minha surpresa diante da crise provocada – e ainda não debelada – pelo Projeto de Emenda Constitucional Nº 33, que simplesmente põe em xeque os poderes do Supremo Tribunal Federal.
A rigor, crises como essas se desenrolam longe do povo porque o tema “separação dos poderes”, embora fundamental para o Estado de Direito, é ainda muito técnico para ser digerido pela voz rouca das ruas.
Nem sempre é fácil explicar que, embora tais poderes sejam autônomos, suas competências se misturam para que cada um controle o outro. Apenas lembrando, o Executivo governa, o Legislativo faz as leis que darão suporte ao primeiro, e o Judiciário controla a forma como os outros dois exercem suas funções, dizendo se estão ou não de acordo com a Constituição.
Essa é a teoria.
Na prática, quanto mais frágil o sistema político mais claro fica que alguns poderes são mais fortes que outros. E que, geralmente, quando o sistema democrático não vai bem das pernas a corda sempre arrebenta no lado do Judiciário.
A história demonstra isso com clareza. O maior exemplo pode ser encontrado na própria origem dessa competência que, pelo jeito, tanto incomoda o Congresso Nacional: a do controle de constitucionalidade. De maneira simplificada,trata-se da capacidade que o STF tem de anular emendas constitucionais e leis ali produzidas.
Essa atribuição apareceu pela primeira vez no Século XIX, quando o então Presidente da Suprema Corte dos EUA, John Marshall, evitou uma colisão com Thomas Jefferson. Esse estratégico recuo político se deu em razão de o presidente dos EUA não ter nomeado como Juiz de Paz um rico financista chamado William Marbury na forma como a lei determinava.
Na sua decisão, acolhida pela Suprema Corte, Marshall criticou Jefferson afirmando que ele havia cometido uma ilegalidade. Porém, em vez de afirmar isso diretamente, Marshall o fez apresentando a contradição entre a lei descumprida e a Constituição.
Dessa forma, o juiz Marshall, decidindo sem decidir, criou o famoso controle de constitucionalidade.
Nesse contexto, o Judiciário acaba sendo o patinho feio dentre os três poderes, pela sua capacidade de jogar água no chope dos outros dois. Mas ao mesmo tempo é o garoto franzino que, numa crise, é o primeiro que apanha.
Isso ocorre porque o fundamento de composição da corte se baseia num critério parte técnico, parte político, jamais diretamente democrático; afinal, juízes não são eleitos pelo povo.
Alcançam seus cargos depois de anos de estudo – e também, de certa maneira, de distanciamento social. Dificilmente se encontra uma liderança carismática no Judiciário. Se uma aparecer, bom sinal não é.
Ao mesmo tempo, se o Estado de Direito amadurece, as cortes ficam mais robustas, pois a população passa a ver nelas uma possibilidade, ainda que distante, de proteção de seus direitos fundamentais. E isto tem sido uma verdade no caso do Supremo Tribunal Federal.
Explico.
Pode não parecer, mas nos últimos dez anos a atuação do STF tem construído uma espécie de “Carta de Direitos”, justamente através da competência que a PEC 33 aniquila.
Nada impediria, a rigor, que o Congresso efetuasse reformas no Judiciário, inclusive para alterar o alcance de suas competências.
O fato, no entanto, é que um Estado de Direito começa a ruir exatamente quando as regras do jogo são alteradas com a partida em andamento. Sobretudo quando essas modificações, ao invés de ampliar, encolhem as competências do Judiciário, responsável por solucionar os conflitos de interesses da sociedade.
O Supremo está longe de ser uma corte perfeita, tanto do ponto de vista técnico quanto político. Bem ou mal, porém, ele funciona como o fiel da balança das nossas instituições democráticas. E mudanças como as desse projeto de emenda não fortalecem a democracia: desgastam seus fundamentos.
Isso é algo recorrente entre nossos vizinhos latinoamericanos, que tentam passar a imagem de sistemas amparados pela vontade do povo, mas que rasgam a própria Constituição a cada nova convulsão política.
Tomara que essa moda não pegue no Brasil. Do contrário, caminharemos a passos largos rumo a um passado recente e sombrio da nossa história.