Por que o Brasil está no topo da lista dos países com medo de tortura policial

Atualizado em 31 de outubro de 2014 às 10:56

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Publicado originalmente na DW.

 

Trinta anos depois de as Nações Unidas terem adotado a Convenção contra a Tortura, a prática ainda é aplicada em pelo menos 79 dos 155 países que ratificaram o documento. A constatação consta de um novo relatório encomendado pela Anistia Internacional, divulgado na terça-feira (13/05).

De acordo com o levantamento, quase metade das 21 mil pessoas entrevistadas em 21 nações tem medo de ser torturada ao ser detida em seu país. No Brasil, o percentual chega a 80%. Em entrevista à DW, Sara MacNeice, gerente da campanha Stop Torture da Anistia Internacional, comenta sobre os resultados do relatório.

DW: Segundo a pesquisa da Anistia Internacional, o medo de tortura é maior no Brasil e no México, seguidos pela Turquia, o Paquistão e o Quênia. Este medo subjetivo corresponde ao grau de tortura real nesses países? São registrados mais casos de tortura em países onde o medo é maior?

Sara MacNeice: Não necessariamente. A Anistia Internacional não disponibiliza listas de países torturadores, por um bom motivo: não é possível apresentar uma lista exaustiva de nações que são realmente culpadas de tortura, que estão violando as leis internacionais. Pode haver muitas outras das quais não sabemos, onde não temos acesso aos dados, onde não conseguimos trazer as informações para fora do país.

Sabemos com certeza de que a China tem um mau histórico nessa questão. Sabemos que a China certamente é culpada de violar as leis internacionais, praticando tortura. No entanto, não vemos necessariamente esse medo refletido tão claramente na pesquisa.

Alguns padrões um tanto mais óbvios emergem, porém: o grau mínimo de medo da tortura é no Reino Unido, na Austrália, no Canadá; o máximo é no Brasil e no México. Para nós, não foi nenhuma surpresa observar isso no México. Aliás, esse é um dos países para que vamos pedir uma mobilização dos nossos afiliados globais, no recorrer desta campanha. Sabemos que a tortura é realmente frequente no México e estamos apelando às autoridades para que tomem providências. Já houve pequenos avanços.

Alguns dos números no relatório são chocantes. Por exemplo: o medo de tortura é maior na Alemanha, onde 30% dos entrevistados dizem não se sentir seguros, ante os 25% registrados na China. Como se explica isso?

Pode se dever a um número de fatores. Provavelmente uma das explicações mais plausíveis seria o ambiente no qual essas entrevistas ocorreram. A organização GlobeScan, com que colaboramos para realizar essa pesquisa, trabalha com parceiros confiáveis nesses países. Contudo, na prática, a pergunta “Você tem medo de tortura?” vai ter um efeito bem diferente sobre alguém na China, com seu histórico de direitos humanos, do que sobre um indivíduo na Alemanha.

Nós não realizamos esse levantamento no Uzbequistão, por exemplo. Nós pretendíamos e gostaríamos de tê-lo feito, mas não conseguimos, porque não teria sido seguro para os entrevistados responder a essas perguntas lá. Então, todos esses fatores têm de ser considerados. E esse é um levantamento de atitude, uma diretriz. O que, nós, da Anistia Internacional, tomamos como base para conduzir nosso trabalho, são as nossas evidências, nossa pesquisa, os casos em que trabalhamos e os indivíduos para quem procuramos obter justiça.

Mais de 80% dos entrevistados concordaram que “regras claras contra tortura são cruciais, pois qualquer uso de tortura é imoral e enfraquece os direitos humanos internacionais”. No entanto, mais de um terço também acredita que a tortura pode ser justificada em alguns casos, para proteger a população. Há uma contradição aí?

Há uma contradição, é claro. Certamente é muito bom e animador ver a porcentagem dos que querem a manutenção da lei e a proibição da tortura. Mas não tanto o fato de mais de um terço dos entrevistados dizer que em alguns casos ela é necessária e aceitável.

Nós sabemos que ao longo da última década e meia – no contexto da guerra contra o terror, da segurança nacional, do contraterrorismo – houve um grande retrocesso, uma certa mudança nas atitudes relacionadas à tortura, sobre quando é aceitável aplicá-la. E há muita retórica e discussão que a Anistia rechaça decididamente. Nossa posição é que a tortura nunca é justificável, sob nenhuma circunstância: assim é a lei e assim é a posição da Anistia Internacional.

A maioria dos entrevistados na China, Índia, Quênia e Nigéria afirmou que a tortura pode, às vezes, ser justificada para obter informações com o fim de proteger o público. Por que a população nesses países é mais a favor de aplicar tortura do que, digamos, a da Grécia, que ocupa o extremo oposto nesse tópico?

O que eles estão nos dizendo em alto e bom som na Nigéria é que a tortura ocorre como algo óbvio, não é algo sobre o que se reflita muito. Se você é preso e colocado numa cela policial, a tortura é quase uma “consequência natural”, na Nigéria e em muitos países em que trabalhamos. Por todos os motivos conhecidos: para extrair informações ou confissões, para basicamente conseguir que alguém diga algo, para extorquir dinheiro.

Em alguns dos países citados, o contexto é muito parecido. Isso resulta numa situação, acho, em que as populações estão bastante dessensibilizadas para as realidades em torno da ilegalidade da tortura. E isso é completamente inaceitável.

A pesquisa adicional que fizemos em alguns desses países mostrou que muitas vezes as pessoas podem pensar que uma surra não constitui necessariamente maus tratos e tortura – quando, na verdade, constitui. Há trabalho a ser feito para ajudar as pessoas nesses países a entenderem quais são os seus direitos, para apoiá-las a terem acesso a eles. Mas também para que saibam quando esses direitos estão sendo violados.