Por que Tolstoi detestava Ana Karenina

Atualizado em 24 de maio de 2013 às 14:03
Tolstoi

Cem anos da morte de Tolstoi. Os russos virtualmente ignoraram. A BBC não. Um jornalista seu foi para a Rússia para fazer um documentário de duas partes sobre Tolstoi.

Tolstoi viveu e morreu atormentado.

Entrou numa depressão aguda quando terminou Ana Karenina. Tinha cerca de 50 anos. Um intelectual ouvido pela BBC diz que é normal escritores ficarem deprimidos ao terminar um romance. Segundo ele, aparece a questão: e agora? Ele lembra que Virginia Wolf se matou depois de terminar um livro. (Devo me preocupar com a proximidade do fim do romance que estou escrevendo? Alguém tem uma receita de antidepressivos, por via das dúvidas?)

Ana Karenina, a história de uma mulher da sociedade que se atira sob as rodas de um trem depois de largar o marido por um canalha, o Conde Vronski, foi um sucesso instantâneo de público e de crítica.

Mas não agradou ao autor.

Eu, de certa forma, entendo. Ana Karenina, a adúltera, é um clichê. É uma repetição russa de Emma Bovary, de Flaubert. Ana é casada com um homem enfadonho. Tem um casamento infeliz. Engravida de um filho que não preencheria depois seu vazio existencial. Cede depois a virtude (para não usar uma palavra mais crua e mais precisa) a um bonitão. E termina morta.

A única diferença da sinopse acima em relação à história de Emma Bovary é que esta optou por tomar veneno em vez de estraçalhar sua beleza adúltera no trilho de um trem.

Veja a Capitu de Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Ela foge dos clichês graças à maestria do autor. Capitu não é casada com um idiota. Bento, o marido, é um homem inteligente e interessante. O suposto amante, Escobar, não é irresistível. O amante de Ana esmaga, como homem, o marido. O mesmo acontece em Madame Bovary: Emma não suporta sequer o barulho que o marido faz ao comer. Machado fugiu disso. Bentinho não é pior que Escobar. Não é mais feio, não é mais tolo. Você estranha que, sendo os maridos tão ridículos, Ana e Emma um dia tenham querido casar com eles. Em Dom Casmurro, você entende a paixão que Bento inspirou em Capitu.

Se não bastasse, Machado deu ambiguidade a sua trama. Bentinho, o narrador, tem certeza de que Capitu o traiu. Mas ele pode estar sendo apenas vítima de ciúmes infernais. Ciumentos são vítimas frequentes de delírios mentais.

Não há, em Dom Casmurro, nenhuma evidência de adultério além da convicção de Bentinho. Ele vê em seu filho trejeitos de Escobar. Imagina por isso que na verdade seja filho de Escobar. Mas uma vez mais. Um homem ciumento vê coisas que podem ser mais produto de sua mente embaralhada do que da realidade.

Ana Karenina e Capitu são quase contemporâneas.

Mas Capitu, como personagem, é superior. O drama de Machado foi ter escrito numa língua secundária num país que em seu tempo vivia na periferia. Tivesse escrito em inglês ou francês, ou mesmo russo, seria comparado aos maiores romancistas da história.

Tolstoi provavelmente não leu Dom Casmurro. Se tivesse lido, concordaria. Teria ainda mais razões para detestar Ana.