“Por que você atirou em mim?”: a vida nas franjas de SP, onde Douglas foi executado

Atualizado em 17 de outubro de 2014 às 17:23

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“Por que você atirou em mim?” Esta foi a última frase do adolescente Douglas Martins Rodrigues, executado na tarde do último domingo por policiais da Força Tática. A pergunta quase infantil de Douglas pode traduzir-se em afirmação: o Estado que chega ao Parque Edu Chaves – zona norte paulistana – é o Estado repressor.

Douglas buscava na tarde de domingo opção de lazer. Junto com o irmão, procurava autorização de algum familiar para participar de um torneio de pipas que ocorria num município vizinho na grande São Paulo. 24 horas depois o Secretário de Segurança Pública busca resposta à rotina praticada por policiais de sua corporação: abuso de autoridade e uso indiscriminado da violência.

Milhares de jovens da periferia encontram na rua o espaço de entretenimento. Como não há presença do Estado com equipamentos que dialoguem com a faixa etária mais presente nos distantes bairros da maior cidade da América Latina, a rua é o palco da convivência, da solidariedade e da tragédia.

No Parque Edu Chaves, Vila Medeiros e Jaçanã as noites são caladas. Não é raro escutar o velho ditado: “Aqui o filho chora e a mãe não ouve”. Não se trata da velada ameaça da bandidagem ou da organização criminosa no território, mas sim da distância geográfica dos serviços mais qualificados e dos governos.

Os pequenos campos de futebol são ocupados a cada dia, seja pela construção civil, seja por movimentos de moradia. Aqui não se sabe exatamente como será o amanhã. O comércio aguarda durante a semana a chegada do sábado, do domingo, dias de maior movimento nas padarias, salões de cabelereiros, bancas de jornais e outros serviços. Assim funciona a economia. Numa ponta do bairro, comércio. Na outra ponta do espaço geográfico, à beira da rodovia, esgoto no meio fio e crianças na calçada.

Subhabitações, puxadinhos e barracões predominam o cenário que ao entardecer torna-se precário com a escuridão. Há aqueles “parados na esquina”, que todos sabem a quem atendem, sejam eles vizinhos, sejam vizinhos de bairros de classe média alta em busca da diversão mais comum por aqui: o uso de drogas, leves e pesadas. Ainda assim, há laços de amizade, de parentesco, de associação.

A revolta que ocupa as ruas do Parque Edu Chaves é construída na esteira da comoção do disputado velório do jovem inocente. Se na periferia não há o exercício mínimo do aparato estatal para assegurar a prática cidadã, as relações entre os que ali moram se reforçam na solidariedade. Ou, ainda, as relações de troca no espaço público ocorrem entre os iguais via rede de solidariedade, tão marcante num ambiente formado de habitações precárias e de um urbanismo surreal, árido.

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É na franja da cidade que essa rede mais se manifesta diante da ausência de Estado, seja na colaboração entre mães para zelar pelo filho alheio durante a extensa jornada de trabalho, tempo perdido em precários ônibus que circulam sem regras de horário ou mesmo de trânsito, seja na solidariedade diante da fome, da dependência química, da construção da laje em pleno domingo ou da orgânica função das instituições religiosas num mar de esquecidos.

Aqui, o Estado é separado da sociedade. Não há sentimento de representação. A representação quando se dá é pela força. Outro ditado muito ouvido por aqui é: “Se não vai no amor, vai no terror.”

Atribuir ao recall da empresa fabricante do armamento da polícia paulista a execução de mais um jovem na cidade é maquiar a realidade presente nas tardes de domingo nos distantes bairros da periferia. As cenas dos telejornais da manhã de hoje exibiam jovens, negros, esfarrapados, numa catarse pré-anunciada do distante centro expandido da capital.

Não é a economia, estúpido! Os mesmos jovens que pela porta principal do distrito policial exibiam suas faces são aqueles que constam nas estatísticas da nova classe média brasileira. Da rua pra dentro de casa, as coisas vão bem, obrigado. É no espaço público que “o bicho pega”. Com as mazelas de um Estado que pouco chega, e quando chega mata, balbuciam palavras embargadas de sangue: “Por que você atirou em mim?”

Alckmin terá como zumbido a macabra pergunta.