Qual a diferença entre o tratamento dado aos índios hoje em relação aos tempos da ditadura militar?

Atualizado em 5 de junho de 2013 às 16:48

As semelhanças, por incrível que pareça, são enormes.

Protesto em Belo Monte
Protesto em Belo Monte

O artigo abaixo foi publicado no site da Unisinos. Seu autor, Ivo Lesbaupin,  é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

”O índio: aquele que deve morrer.”

Este é o título do “documento de urgência” assinado por um grupo de bispos e missionários divulgado em 1973.

Estávamos no quarto ano do governo Médici, o pior período da ditadura civil-militar de 1964. O documento era uma denúncia da política indigenista do regime que, imbuído de uma concepção desenvolvimentista, de “Brasil Grande”, queria a todo custo construir o conjunto de estradas que atravessaria a Amazônia, a Transamazônica.

Várias destas estradas cortavam terras indígenas. O governo lidou com este empecilho passando por cima dos povos indígenas que ousaram se contrapor a tais obras.

Os autores do documento afirmam: “Essa calamidade, porém, se justifica dentro da visão do sistema “pois o Parque Nacional do Xingu não pode impedir o progresso do país”, como afirmou o presidente da FUNAI, general Bandeira de Mello”.

E mais adiante: “Referindo-se às diretrizes da FUNAI para 1972, (o general) voltou a ressaltar que o índio não pode deter o desenvolvimento”.

A história parece estar se repetindo.

Em primeiro lugar, contrariando a posição que tinha enquanto candidato, o governo Lula ressuscitou um projeto do tempo da ditadura, a usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu.

Este projeto, iniciado em 1975, foi interrompido em 1989, em razão da resistência dos povos indígenas. O Banco Mundial, que financiaria a construção, desistiu da obra. Somente se voltou a ouvir falar neste projeto quase vinte anos depois, no primeiro mandato do governo Lula.

O projeto foi remodelado para reduzir a obra de cinco usinas para apenas uma, de modo a torná-lo palatável. Mesmo no novo formato, a usina afetará seriamente o rio Xingu, deixando o trecho conhecido como “Volta Grande” – cerca de cem quilômetros – reduzido a um riacho. O habitat dos povos indígenas e dos ribeirinhos será gravemente atingido.

Houve inúmeras tentativas de povos indígenas, de movimentos sociais, de setores da Igreja católica de demover o governo deste projeto. O Ministério Público Federal do Pará por várias vezes determinou a suspensão da obra. A cada medida judicial contrária ao projeto, o governo interpôs outras medidas para mantê-lo.

O IBAMA considerou que havia razões ambientais suficientes para não liberar a obra. Para afastar o IBAMA do caminho, o governo dividiu a instituição em duas. Não foi o bastante: foi preciso afastar também alguns técnicos que insistiam em ver problemas na realização da obra.

A licença para construir incluiu uma série de condicionantes: a empresa responsável deveria oferecer à população local melhorias em infraestrutura, em saúde, em educação, assim como garantir condições dignas de trabalho para os operários.

A empresa cumpriu menos de 20% dos condicionantes, porém a obra continua e os empréstimos do BNDES são regularmente concedidos.

Embora ciente do descumprimento desta parte do contrato (os condicionantes), o governo não interfere. Mas toda vez que os operários interromperam o trabalho ou os indígenas protestaram, a intervenção foi imediata.

Não contente com a usina de Belo Monte, o governo incluiu no PAC a construção de 28 usinas hidrelétricas nos rios da Amazônia: desde Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, até cinco usinas projetadas no Tapajós. Em cada um destes lugares, enfrentou-se com a resistência dos povos indígenas.

Mas o governo não recuou. Para garantir a realização de seus projetos e dos estudos ambientais que os precedem, o governo instituiu a possibilidade de uso de tropas – a Força Nacional – para obrigar os indígenas à submissão. A justificativa é a mesma: o índio não pode atrapalhar o progresso do país.

O que está em questão tanto na época da ditadura quanto hoje é a concepção de desenvolvimento. Para a política dominante, desenvolvimento é crescimento econômico: produzir cada vez mais, o que supõe aumento da demanda de energia. Portanto, o Brasil tem de produzir mais energia elétrica.

No entanto, frente à gravidade da situação ambiental no planeta, dos riscos que corremos se continuarmos este sistema de expansão da produção e do consumo, a própria concepção de desenvolvimento deve ser repensada. O modelo produtivista-consumista tem de ser superado.

Outro forte argumento dos que se opõem à construção das hidrelétricas na Amazônia é que não temos mais necessidade deste tipo de fonte de energia. As hidrelétricas existentes, se forem reformadas, já terão como resultado um aumento significativo da energia produzida.

Em segundo lugar, o Brasil dispõe de fontes renováveis de energia, tais como o sol, os ventos, as ondas do mar.

Nós não precisamos nem de novas usinas hidrelétricas nem de energia nuclear, como o demonstram estudos de especialistas.

Na Alemanha, durante anos os governos defenderam que a energia nuclear era imprescindível como fonte de eletricidade.

Depois da tragédia de Fukushima, o governo alemão cedeu e desistiu deste caminho: não construirá mais usinas nucleares e vai pouco a pouco desativar as usinas existentes. Está investindo seriamente em energia solar e eólica.

O desprezo em relação aos povos indígenas não se limita ao caso das hidrelétricas, por si só extremamente grave.

Soma-se a isso a tragédia vivida pelo povo guarani-kaiowá, de Mato Grosso do Sul, obrigado a viver em locais exíguos ou na beira da estrada, constantemente submetidos a investidas armadas de jagunços ou da polícia local a serviço dos fazendeiros.

Aí o conflito é motivado pela ganância dos fazendeiros, do agronegócio, desejosos de se apropriar das terras indígenas.

Quem liga para essas crianças?
Quem liga para essas crianças?

Como diz o jornalista Washington Novaes: “Parece iminente a ameaça de conflito armado entre 45 mil índios caiovás-guaranis e fazendeiros que disputam suas terras em MS. É tema sobre o qual o autor destas linhas escreve há décadas. Centenas deles já morreram nos conflitos. E um jovem guarani suicidou-se no dia seguinte ao de seu casamento; enforcou-se numa árvore e deixou escrito na terra, sob seus pés: “Eu não tenho lugar”.

Estas linhas já estavam escritas quando mais um índio foi assassinado no mesmo estado, desta vez da etnia Terena, numa ação de reintegração de posse em favor de fazendeiros de que participaram a polícia federal e a polícia militar do Mato Grosso do Sul.

Hidrelétricas, mineradoras, agronegócio, desenvolvimentismo, neodesenvolvimentismo versus direitos dos povos indígenas: qual a diferença entre a política indigenista do atual governo e aquela da ditadura de 1964?