Quando Nietzsche chorou. Por Pedro Zambarda

Atualizado em 12 de março de 2016 às 15:43
Débi, Loide e Scooby Doo
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Histórico pela quantidade de besteiras, o pedido de prisão preventiva de Lula assinado pelos promotores José Carlos Blat, Cássio Conserino e Fernando Henrique Araújo virou piada pela confusão entre os filósofos Hegel e Engels. Mas a peça tragicômica não errou apenas no nome do companheiro de Karl Marx.

Nas 179 páginas, a ignorância do Ministério Público de São Paulo aparece com força na passagem 101. “Falou Zaratustra: Nunca houve um super-homem. Tenho visto a nu todos os homens, o maior e o menor. Parecem-se ainda demais uns com os outros: até o maior era demasiado humano”, afirma o documento.

Na passagem seguinte, os promotores mencionam o nome do pensador alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) com a grafia errada — “Nietzche”, sem a letra s.

Essas observações parecem um detalhe diante da ação do MP, mas elas demonstram o desconhecimento dos autores sobre filosofia.

“Fundamental a referência à obra do filósofo alemão Friedrich Nietzche, pois de forma muito racional estabelece que todos os seres humanos se encontram em um mesmo plano, premissa maior que norteará toda a construção do pedido de prisão preventiva do denunciado LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, qual seja, a do princípio constitucional da isonomia”, escrevem.

Nietzsche nunca defendeu filosoficamente a isonomia, um conceito tradicional do Iluminismo do século 18. Homem do começo dos anos 1900, niilista, metafísico e um dos pioneiros do ateísmo com agudas críticas à cultura cristã, o pensador alemão desenvolveu a ideia do “super-homem” (übermensch, do alemão) como um antiprojeto ao idealismo ocidental.

Com a “morte de Deus” e a falência cultural do cristianismo como parâmetro para a moral, o homem voltaria a si para a criação de novos valores na construção de uma sociedade melhor acabada, distante do conceito do pecado, da penitência e do moralismo vazio.

É uma jornada espiritual que desemboca em uma importante teoria filosófica chamada de “o eterno retorno”.

A obra citada pelos promotores, “Assim falou Zaratustra” (1883), numa tradução controversa de uma editora acusada de plágios chamada Martin Claret, não é um livro que serve de referência jurídica. Na verdade, é um tratado filosófico que se contrapõe às leis e à conduta ética alemã na Europa do tempo de Friedrich Nietzsche.

O livro foi escrito num formato que lembra a Bíblia Sagrada justamente para questionar a religião e a formação cultural ocidental. Não é um livro que daria embasamento sobre o tratamento da Justiça diante de Lula.

Como estudante de filosofia, me espanta como funcionários públicos como José Carlos Blat, Cássio Conserino e Fernando Henrique Araújo utilizam de maneira leviana as ciências humanas. Basta citar qualquer filósofo com frases escolhidos no Google para um pedido de prisão ganhar “ares de intelectualidade”.

A BBC Brasil perguntou a José Carlos Blat sobre a repercussão da troca de Engels por Hegel. Ele respondeu de forma ríspida: “Vão caçar o que fazer. Vão catar coquinho”.

E ainda complementou: “é claro que nós sabemos a diferença entre Engels e Hegel. Numa peça de 200 laudas, falando de crimes essenciais, vão preferir ficar discutindo a filosofia?”