Quem é a ‘psicóloga cristã’, advogada da cura gay que virou conselheira do ministro da Saúde. Por Hermes Fernandes

Atualizado em 17 de maio de 2016 às 12:58
Marisa Lobo, a "psicóloga cristã", e o ministro Ricardo Barros
Marisa Lobo, a “psicóloga cristã”, e o ministro Ricardo Barros

 

Pense numa mulher articulada, formada e pós-graduada em um importante ramo das ciências humanas, mas cujo discurso destoe totalmente dos movimentos sociais que promovem os direitos humanos e o empoderamento feminino. É possível isso? Sim.

Como? Que ingrediente somado aos que alistei acima poderia transformar uma potencial feminista e militante dos direitos humanos em alguém de postura anacrônica, prestando um desserviço às causas sociais que deveria defender? As evidências parecem apontar para o fundamentalismo religioso.

Para quem não ligou os pontos ainda, estou falando da “psicóloga cristã” Marisa Lobo.

Se sua atuação se restringisse ao espaço religioso, talvez não causasse tanto estardalhaço. Mas, pelo jeito, Marisa tem ambições menos modestas. Aproveitando-se da projeção que teve ao ver seu registro profissional cassado acusada de mesclar sua crença com sua prática clínica, ela tem sido figurinha fácil transitando pelos corredores do poder, bem como em eventos políticos ou religiosos, sempre ladeada por figuras igualmente controversas e proeminentes.

O pastor Silas Malafaia, o deputado Marco Feliciano e o senador Magno Malta estão entre os fiadores de sua imagem pública.

Usou fartamente as redes sociais para ajudar a promover o impeachment de Dilma Rousseff, fazendo coro com seus mentores. E como não poderia deixar de ser, comemorou a queda da presidenta e a ascensão de Michel Temer.

Em  momento algum, tangeu críticas pelo fato de não haver mulheres entre os ministros escolhidos pelo presidente interino. Mas foi uma das promotoras da campanha levantada pela esposa de Malafaia em apoio à nova primeira-dama (“bela, recatada e do lar”).

Em um comentário sem noção no Twitter, o jornalista Ricardo Noblat escreveu que, apesar de não haver mulheres ou negros à frente dos ministérios, há ao menos dois homossexuais, de modo que os ativistas LGBT’s deveriam estar satisfeitos. Até o momento, a psicóloga que defende a “cura gay” não se manifestou.

O fato é que, quando é politicamente conveniente, tanto ela, quanto seus gurus, fazem vista grossa para qualquer coisa de que discordem. Será que ela acredita cegamente que os dois ministros gays do governo Temer poderiam ser curados? Uma sessão de exorcismo resolveria? Ou seria melhor deixar pra lá em nome de interesses comuns?

Acredito que os homossexuais, todos, sem exceção, precisam de cura. Mas não da cura de sua homossexualidade. Eles precisam ser curados das feridas abertas pela nossa hipocrisia e preconceito. Acho que Marisa não deve concordar comigo.

Para ela e tantos outros que fazem uma leitura fundamentalista das Escrituras, o que os gays necessitam é abandonar sua prática perversa e abominável, seja pela via terapêutica, ou através do exorcismo, ou mesmo da penitência.

Recentemente, Marisa Lobo posou com seu novo livro, “A ideologia de Gênero na Educação”, ao lado do recém nomeado ministro da Saúde Ricardo Barros. Ela escreveu em sua página no Facebook: “Aproveitei para alerta-lo sobre a imposição da ideologia de gênero na educação e como essa doutrinação infantil pode gerar transtornos psicológicos nas crianças como a disforia de Gênero entre outras.”

Segundo a psicóloga, a “ideologia de gênero também é uma questão de saúde, #SaúdeMental.”  Ainda de acordo com seu relato: “Ele foi extremamente simpático, atencioso e me respondeu dessa forma. ‘Isso já acabou, o MEC agora é do DEM’ ou seja, me encheu de esperanças, de que nossas crianças merecerão cuidados de fato do ministério da educação e da Saúde que é agora seu ministério” (sic).

Depois da conversa entre os dois, Barros deu uma declaração defendendo que as igrejas participem do debate sobre o aborto.

Lamentável saber que uma luta de anos para combater a intolerância e o preconceito no ambiente escolar poderá sofrer um revés por conta do lobby religioso.

Na comunidade que pastoreio, um menino de apenas 11 anos, colega de algumas de nossas crianças, cometeu suicídio tomando chumbinho e sufocando-se com um saco plástico, por não suportar o bullyng sofrido na escola por conta de sua orientação sexual.

Triste saber que este é apenas um entre inúmeros casos. Porém, o fundamentalismo religioso cega de tal maneira, que além de adoecer a alma, cauteriza a consciência, privando-nos tanto do senso crítico, quanto da compaixão e da empatia.

O que a psicóloga Marisa Lobo chama equivocadamente de “ideologia de gênero”, nada mais é do que uma tentativa sensata de se combater o preconceito dentro da sala de aula. E não se limita ao preconceito de gênero, mas também o étnico, o religioso, e até o que vitimiza os deficientes físicos e mentais.

Falta um tanto de misericórdia no discurso religioso daqueles que se apresentam como seguidores de Jesus. Talvez se esqueçam de que, nas palavras de São Tiago, “o juízo será sem misericórdia para aqueles que não usarem de misericórdia.”

Para a psicóloga e sua turma, o governo estaria estimulando a pedofilia e a homossexualidade através de cartilhas distribuídas nas escolas. O objetivo seria destruir os valores judaico-cristãos juntamente com o modelo tradicional da família.

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Haveria uma conspiração comunista bem ao estilo gramscista, para desconstruir toda e qualquer estrutura social, a começar pela família, preparando assim o cenário para a instalação de um governo mundial totalitário. O que talvez ela não saiba, ou finja não saber, é que a política em prol da diversidade tem sido adotada nos países mais desenvolvidos do mundo (a maioria  tradicionalmente cristãos), a começar pelos EUA, a maior nação capitalista do planeta. Em contrapartida, não é adotada em países socialistas como Cuba e China, muito menos pela Rússia (que segundo alguns, vai ressurgir como grande potência comunista). Vai entender…

Sem dúvida, os países em que a diversidade é mais duramente combatida são os teocráticos, onde impera a visão fundamentalista do Islã.

Se a bancada evangélica seguir em seu agressivo lobby no governo atual, corremos o risco de ver implantada uma espécie de Talibã gospel no país.

Urge reafirmarmos e redobrarmos a vigilância sobre a laicidade do estado brasileiro. Parafraseando o reformador protestante Martinho Lutero, Deus age no mundo através de dois braços, o da Lei (estado) e o da Graça (igreja). O problema é quando os braços resolvem se cruzar. Ambos ficam paralisados, como se estivessem presos numa camisa de força. O desafio, portanto, é manter cada poder em sua esfera. A religião tem sua importância. Mesmo os mais céticos hão de concordar. Mas ela não está autorizada a extrapolar sua esfera e impor seus dogmas e doutrinas à sociedade como um todo.

No púlpito da igreja que pastoreio, não sou psicólogo. Posso até citar Freud, Jung, e tantos outros. Mas não posso transformar o culto numa sessão terapêutica. No consultório, o pastor deve ceder lugar ao terapeuta. Não cabe ali discurso religioso. O mesmo se aplica ao campo da política.

No plenário não há pastores, nem padres, nem pais-de-santo, mas apenas representantes do povo. Assim como no púlpito não deveria haver candidatos em busca de votos, nem políticos em busca de apoio às suas pautas. Se mantivemos cada atividade em sua própria esfera, avanços sociais serão consolidados sem interferência religiosa, e a religião, seja qual for, terá assegurado o seu direito de prestar culto e divulgar suas crenças e valores.