Sobre a pobreza e a democracia. Por Elika Takimoto

Atualizado em 29 de março de 2017 às 12:21

Publicado no blog da filósofa e escritora Elika Takimoto:

Captura de Tela 2017-03-29 às 12.14.28

O ano é 2017. Estamos vendo um novo governo impondo ao povo medidas que claramente vão contribuir para um aumento da desigualdade social. As reformas estão, por exemplo, privatizando bens públicos, mudando as escolas do Ensino Médio de todo o país, alterando Leis Trabalhistas em benefício dos grandes empresários e nos obrigando a trabalhar até a morte. Todas essas mudanças contribuirão para um aumento da pobreza que estava diminuindo em nosso país ainda que de forma bem tímida.

Há quem fale, e eu sou uma delas, que a nossa democracia está sob ameaça. Entendemos quando afirmamos isso que ela é uma forma de resolução das contendas entre os diferentes grupos sociais. Quando se governa para um grupo que está longe de representar a maioria da população por interesses extremamente particulares entendemos que isso não é típico de um regime democrático, pois, a democracia, assim acreditamos, deve se fundamentar na ideia de excluir a humilhação de várias naturezas.

O mundo em que vivemos onde o Mercado manda mais do que Deus que, de fato, parece ter desistido da humanidade dado tudo o que estamos testemunhando, neste mundo a pobreza é considerada como uma falha moral das pessoas. Os (ditos) ricos são ainda capazes de culpar um indivíduo pela sua situação, chamando-o de preguiçoso, incompetente, vagabundo e mais outras coisas piores. Portanto, dizem que nada mais justo do que deixar os pobres onde estão.

No Brasil especificamente, todos vimos as consequências das políticas sociais implementadas por Lula e continuadas por Dilma. Pessoas, que nunca souberam o que era uma renda mensal, passaram a desfrutar do benefício do Bolsa Família em lugares onde crianças brincavam peladas por falta de roupa e dormiam com fome e morriam de diarreia por falta de dignidade. Negros e negras passaram a entrar nas faculdades não mais para pegar na vassoura ou vestir um avental, mas para segurar um lápis e entrajar jalecos. Os aeroportos, shoppings e outros lugares onde eram frequentados somente por uma elite que usava perfume importado passaram a ser pisados por havaianas.

Houve quem se incomodasse muito com a ascendência de várias classes sociais e estava somente esperando uma desculpa (que veio com as manifestações de 2013) para colocar todo o ódio para fora. Daí, passamos a testemunhar a força dos esteriótipos nos mais variados ambientes sociais. Os pobres (abaixo vou definir melhor o que vem a ser “pobre”) foram acusados de “mamar nas tetas do governo” e não querer trabalhar, foram acusados de fazer filhos só para ganhar mais dinheiro do Estado e foram acusados de usar dinheiro para comprar roupas de marca (imagina pobre com roupa de marca!, diziam) e cachaça, dentre outras acusações que seguem a mesma linha.

Dialogar com essas pessoas é o que gosto de fazer para tentar entender quem pensa tão diferente de mim. O que observei foi que uma grande maioria não dispunha de informações sobre a “pobreza” dessas pessoas (abaixo essa proposição ficará mais clara) e sobre os programas como o Bolsa Família (por exemplo, valores que são muito abaixo de qualquer salário, que as famílias podiam receber no máximo ajuda para três filhos e que o benefício era dado somente para as mulheres implicando em um aumento da auto-estima sem precedentes em várias regiões do país).

Quando questionei o porquê de tanto preconceito sem fundamento contra uma classe menos beneficiada ouvi que cada um é responsável pela sua posição econômica e que quem quer consegue (vide alguns indivíduos que até aparecem nos jornais, assim me orientaram). Percebi que ao dizerem coisas dessa natureza desconsideravam o fato de que a maioria das pessoas que são ricas já veio de famílias que fazem parte de uma elite e, portanto, não são responsáveis por tudo o que têm. Não é à toa que ao verem uma notícia que quebra a regra como a de um ser que veio da extrema pobreza e consegue “subir na vida” sem ajuda do Estado eles se regozijam porque reforça o discurso falacioso de que somos aquilo que merecemos ser: ricos ou pobres. Não é também sem motivo ou razão que os programas públicos realizados no Governo Lula que visaram erradicar a pobreza foram chamados de paternalistas. Por que tanta resistência em apoiar esses programas que, como vimos e noticiados no mundo todo, contribuíram para diminuir a desigualdade social? De onde vem essa falta de empatia?

Seja lá qual for a origem da falta de capacidade de se colocar no lugar do outro ela vem junto com a ideia de que certos valores devem ser adotados por todos como os únicos possíveis. Mistura tudo isso apontado e temos a tirania ética (tão fácil de verificar nas redes sociais e nas ruas) na qual as pessoas que vivem sob um determinado modelo desprezam, desrespeitam, matam quem pensa diferente. E esse tipo de conduta não tem nada de democrático, pois flerta com o fascismo.

A pobreza tem muitas definições e não me refiro aqui somente aquela que se mede pelos bens materiais que cada indivíduo tem. É algo muito mais profundo, que estrutura o, digamos, espírito. Dentro desse contexto, além de não terem dinheiro, esse pobres são incapazes de enxergar que são vítimas de um arranjo social injusto e por isso se mostram extremamente passivos (quiçá sorridentes elogiando o patrão que lhe explora) e não lutam pelos seus direitos e quando o fazem é por uma causa específica como a morte de uma criança da comunidade ou a privatização da água, mas jamais por mudanças sociais mais gerais que alterariam a estrutura social na qual eles estão inseridos.

Se fossem mais incentivados por quem lhes pagam o salário a pensar sobre o assunto, tudo seria diferente. Mas não. A participação deles na política é desencorajada de forma indireta pela elite que faz os pobres acreditarem que eles são dignos de pena, que não sabem pensar, que são fracos. Temos daí, um looping infinito já que a exclusão dos pobres gera um sentimento de baixa auto estima e autoexclusão.

Percebam que há várias atividades gratuitas espalhadas pelo Brasil como museus, exposições, shows, bibliotecas e por aí vai. Até mesmo uma aula de Ioga pode entrar como exemplo. Muitos desses locais não são frequentados e usufruídos por pessoas pobres. Se perguntarem para eles, ouviremos, de uma forma geral, que eles não se sentem pertencedores e merecedores desses espaços ainda que não exista nada aparentemente que os proíba de usá-los. É comum ouvir deles “isso é coisa de rico”, “eu sei qual o meu lugar”.

Há uma herança invisível que é passada de pais para filhos que é um dos verdadeiros privilégios e da qual não nos damos conta que a recebemos. Na infância, meus pais sempre me estimularam a ler, levaram-me ao cinema, ao teatro, conversavam comigo, davam-me brinquedos que estimulavam a minha inteligência. Sem saber, eu estava a anos-luz de distância da maioria das crianças do Brasil. Os estímulos que recebemos na infância vão sendo incorporados de forma inconsciente. Se não pararmos para refletir, a impressão é que o natural seja assim e que todos nascem com isso.

Ledo engano.

O filho do pedreiro e da empregada doméstica, por exemplo, não recebeu todo esse estímulo porque sua miséria não se dá apenas pelo quanto que se carrega na carteira. Como não damos o que não temos, não se ensina aquilo que não se aprende. Ainda que na família pobre tenhamos um pai e uma mãe presentes, o que se transmite é a inadequação social (muito bem mostrado no filme “Que Horas Ela Volta?”) e uma carência de hábitos que estimulem à cognição.

Se muitos espaços públicos gratuitos não são usados por pessoas de baixa renda é porque, em certa medida, a maioria delas sofre o preconceito de ser pobre não somente economicamente falando, mas carente de cognição e, portanto, não se sentem seguros para frequentar determinados locais. Ou seja, a competição social não começa em uma prova de seleção para uma empresa ou universidade, pois o resultado já está pré-definido por culturas de classe heterogêneas.

E é bom que continue assim, diriam muitos que apoiaram o impeachment de Dilma e que são cegos para o sofrimento alheio. Aliás, esses tentam minimizar ao máximo o sofrimento dos pobres – como vimos no episódio da foto de dois manifestantes vestindo a blusa da CBF com a mulher levando o cachorro sendo acompanhados pela babá de branco que empurrava um carrinho com uma criança. Não faltou gente que vibrou de alegria quando a babá disse que estava feliz com seu emprego.

O sentimento de satisfação ao ver um empregado elogiar o patrão está diretamente conectado ao preconceito de que pobre não sabe usar o dinheiro e o corpo já que bebe e faz filho precocemente. Atribuem ao pobre um baixo valor moral e racional, mas não enxergam que a imoralidade e a irracionalidade das elites que contribuem para o aumento ou, na melhor das hipóteses, para a manutenção da pobreza e do sofrimento dos menos abastados são considerados um padrão ético de qualidade. Explico-me: se há uma festa em uma cobertura em Ipanema cujos participantes fazem sexo entre eles, estamos dentro da famosa libertação sexual. É bonito. É bacana, diriam. Se os convidados consumirem drogas, não há nada de alarmante e feio nisso assim como se, entre eles, houver quem pratique a sonegação fiscal não será considerado um criminoso. Mas tenhamos isso em uma laje na Rocinha e todo o julgamento será bem diferente.

As pessoas não percebem que os valores que carregam não são absolutos e sim fruto de uma história e de uma educação. O pobre que recebe uma bolsa seja ela para estudar seja para comer é considerado um parasita, um preguiçoso. Mas o rico que desfruta dos rendimentos financeiros não é julgado da mesma forma, pelo contrário. A este são concedidos mais isenções e incentivos fiscais, perdões de dívidas e anistia para sonegadores, citando poucos exemplos.

A pobreza carrega também, em grande parte, a dificuldade de argumentação e persuasão. Fruto da dominação e exploração as quais são submetidas é esse impedimento de uma habilidade retórica que é fundamental para exercer plenamente a cidadania. Os pobres são, de forma consciente e inconsciente, emudecidos. O que estou querendo dizer é que a pobreza não é só privação de bens materiais, mas também de voz pois essa é ouvida por aqueles que têm capacidade para se expressar. A pobreza faz as pessoas mais pobres.

Esse sistema econômico tão elogiado por muitos que deles se beneficiam pois é fundamentado na ideia de liberdade e autonomia do indivíduo, produz, vejam que interessante, justamente o oposto: a perda de liberdade para uma grande parte da população. Considero essa “perda” de ricos e pobres porque muito dinheiro implica grandes responsabilidades que, por sua vez, implica um certo tipo de escravidão que se não for bem administrada gera depressão, ansiedade, alcoolismo e outras doenças comuns que atingem todos independente de quanto se tenha no banco.

Diante tudo isso, digo que em 2017 há uma clara ameaça à Democracia porque existe na atualidade um claro incentivo ao aumento da pobreza por parte de quem está no comando. Democrático seria um governo que criasse condições para que a população pudesse participar de forma justa e igualitária de seja lá o que for. A realização desse tipo de sociedade cabe às instituições políticas, em primeira instância. Ao indivíduo, a cada cidadão que se diz defensor da democracia, cabe, por obrigação, apoiar medidas que venham contribuir de forma eficaz para tal finalidade.

Lembrando que a pobreza é diminuída não somente em termos de bens materiais mas, principalmente, quando houver espaços públicos frequentados por pessoas de todos os gêneros, de todos os credos e de todas as cores sem medo de estar em um lugar do qual elas não fazem parte.