‘Sua paixão era condenar sempre’: a incrível semelhança entre Moro e um personagem de uma comédia grega. Por Bruno Azevedo

Atualizado em 23 de novembro de 2016 às 9:44
Filocleon
Filocleon

Este texto foi publicado originalmente no blog do jurista Bruno Azevedo.

A peça “As Vespas” (Σφῆκες Sphēkes), de Aristófanes, foi escrita em 422 BC.

Qualquer semelhança com personagens atuais será mera coincidencia. 🙂

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A comédia começa com um diálogo entre Sósias e Xantias, escravos de Filoclêon. Incumbidos de guardar o velho, não deixando com que ele vá para o Tribunal, os dois personagens explicam aos espectadores a doença que ataca Filoclêon.

Diz Xantias:

“Se vocês estão curiosos por saber, façam silêncio: vou dizer qual é mesmo a doença do meu senhor: é a paixão pelos tribunais. A paixão dele é julgar; ele fica desesperado se não consegue ocupar o primeiro banco dos juízes. À noite ele não goza um instante de sono. Se por acaso fecha os olhos, o próprio espírito fica olhando para a clepsidra. A paixão dele pelo voto no tribunal é tão grande que faz ele acordar apertando três de seus dedos, como se oferecesse incenso aos deuses, em dia de lua nova. (…) Logo depois do jantar ele pedia as sandálias, corria para o tribunal em plena noite e adormecia lá, colado a uma coluna como uma ostra à concha. (…) Com receio de não ter a pedrinha para o voto, ele tinha no jardim de sua casa um canteiro de pedrinhas, que renovava sem parar. Este era a sua loucura”[2]

O texto traz um personagem de comportamento patológico. Sua obsessão com o tribunal, com o poder de julgar, sugere algo não revelado. Sutilmente, Aristófanes nos questiona acerca dos motivos determinantes que levam o julgador à corte. Na visão do teatrólogo grego, certamente não é o amor à justiça… Mais à frente, Filoclêon exige que possa sair:

“Que é que vocês estão querendo fazer? Vocês não vão mesmo me deixar julgar? Dracontidas vai ser absolvido!”[3]

Fica claro que, mesmo sem ouvir as partes, Filoclêon já pensara em condenar o réu. Filoclêon tinha ganas de condenar, sempre.

(…)

Aristófanes nos indica que seu personagem julgador nada julgava. Ele apenas condenava. E as condenações indicam certo prazer, sem o qual Filoclêon não poderia viver. Discutindo com o filho, que queria prendê-lo em casa, mais uma vez Filoclêon manifesta seus desvios patológicos:

“Sou mesmo um infeliz! Se eu pudesse matar você! … Mas, com quê? Depressa! Uma espada ou uma sentença condenatória!”[5]

O conceito que Filoclêon fazia da justiça é diverso do externado pelos filósofos clássicos, exceto pelos cínicos, embora a visão do personagem de Aristófanes seja ainda mais pessimista. Se para um pensamento mais rebelde a justiça poderia ser a lei do mais forte, para Filoclêon a justiça era palco para seu prazer ou para suas arengas pessoais. Quanto a esse último aspecto, Filoclêon desafia seu filho: “Se vocês ao me deixarem em paz, vamos brigar na justiça.”[6]

(…)

Filoclêon insiste, ainda com mais veemência:

“Que criatura é mais feliz, mais afortunada do que um juiz? Que vida é mais gostosa do que a dele? Que animal é mais temível, principalmente na velhice?”[23]

Filoclêon está seguro do sua missão . Diz:

“E este salário me serve de proteção contra todos os males, e de armadura contra todos os projéteis; (…) Isto não é uma verdadeira soberania, igual à de Zeus? Falam de nós como do próprio Zeus. Se fazemos barulho em nosso tribunal, todos os parentes gritam: ‘Ah! Zeus! Que tempestade desaba sobre o tribunal!’”[24]

(…)

Finalmente, filho e pai chegam a um acordo. Bdeliclêon deixará o pai em casa, julgando os escravos. Diz:

“Está bem! Está bem! Se você gosta tanto de ser juiz, não é necessário sair de casa para isto; fique aqui e julgue seus escravos.” [26]

Filoclêon julgará um cachorro acusado de roubar pedaço de queijo. O cachorro foi absolvido… É que Filoclêon estava indisposto, nem ele mesmo acreditava na absolvição, dizendo: “Me diga: ele foi mesmo absolvido?”[30]

Ele não aceitou o que fez. Perguntava:

“Como vou suportar a ideia de ter absolvido um acusado? Que será de mim? Deuses veneráveis! Me perdoem! Fiz isso tudo sem querer; este não é o meu hábito”.[31]

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(O resumo acima é de BRUNO AZEVEDO, Juiz de Direito, Professor de Direito – UEPB. Especialista, Mestre em Direito Constitucional. Doutor em Direito da Cidade na UERJ.)