Trabalho escravo no Brasil: uma realidade que nos envergonha. Por Paulo Henrique Arantes

Atualizado em 16 de dezembro de 2017 às 12:12

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REVISTA DA CAASP

O principal ingrediente da bala de goma em formado de ursinho fabricada pela empresa global Haribo, com sede na Alemanha, é extraído no Nordeste brasileiro. No último dia 23 de outubro, o canal de TV alemão ARD levou ao ar um documentário revelando a exploração de trabalho escravo na região, onde menores de idade coletavam a cera da carnaúba, no alto de árvores enormes, sem qualquer aparato de segurança. A 40 reais por dia, as crianças dormiam ao relento, não tinham acesso a água potável e, às vezes, não se alimentavam durante as jornadas extenuantes. Tudo para que os ursinhos de goma fossem produzidos a contento e baixo custo.

      O caso Haribo é só mais um flagrante a colocar em xeque no Exterior as condutas do Brasil nesse campo. Signatário de tratados internacionais contra o trabalho escravo contemporâneo, eufemisticamente chamado de trabalho em condições análogas à escravidão, o país chegou ser elogiado por avanços nessa seara, particularmente por conta de seus dispositivos legais e da divulgação periódica da Lista Suja, que relaciona os empregadores flagrados. Mas uma onda anticivilizatória arma-se sobre estas terras.

      No raio X do retrocesso, dois nódulos autorizam um diagnóstico alarmante: a condenação do Brasil pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos, em dezembro de 2016, após processo de três anos referente à exploração de trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde, no sul do Pará, por inação do Estado; e a Portaria 1.129 do Ministério do Trabalho, de 16 de outubro de 2017, que afrouxa o conceito moderno de escravização no trabalho e tira autonomia dos fiscais. A portaria foi liminarmente suspensa pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, em resposta à ação direta de inconstitucionalidade do partido Rede. Não há data marcada para apreciação em plenário.

      O ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, disse que “a portaria teve um lado bom, porque trouxe o conjunto da sociedade para a discussão”. Leitura diametralmente oposta fez a então secretária nacional da Cidadania do Ministério dos Direitos Humanos, Flávia Piovesan, que deixou o cargo. Em evento na sede da OAB-SP, entidade da qual é conselheira, ela declarou: “Fomos todos surpreendidos com o Diário Oficial da União do dia 16 de outubro, que trouxe uma portaria unipessoal adotada no âmbito do Ministério do Trabalho. O impacto é desastroso por, de um lado, ofender e reduzir drasticamente o alcance do conceito de trabalho escravo, limitando-o a situações de restrição de liberdade e de escolta armada, e retirando do conceito enunciado no Artigo 149 do Código Penal a condição degradante do trabalho, bem como a jornada exaustiva. Portanto, a portaria ofende frontalmente a legislação penal ao esvaziar dois de seus componentes, além de contrariar a Constituição de 1988, pois o trabalho escravo afeta o valor da dignidade humana, e de violar os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, sobretudo os da Organização Internacional do Trabalho”.

      A Portaria 1.129 foi publicada dias antes de o presidente Michel Temer ser salvo no cargo pela Câmara dos Deputados, em votação que empurrou para depois do mandato o andamento judicial das denúncias de corrupção das quais é objeto. A Frente Parlamentar Agropecuária – a bancada ruralista, histórica e indisfarçadamente contrária às normas de combate ao trabalho escravo – votou em peso a favor do presidente.

      Às suspeitas de votarem em troca de benesse legal, assim responderam os ruralistas: “A portaria vem ao encontro de algumas pautas da Frente Parlamentar Agropecuária e diminui a subjetividade da análise. No entanto, não participamos de nenhuma tratativa com o Poder Executivo nesse sentido”.

      Tiago Muniz Cavalcanti, coordenador nacional da Conaete (Coordenadoria Nacional e Combate e Erradicação do Trabalho Escravo), órgão da Procuradoria Geral do Trabalho, afirma que o problema atual é a falta de vontade política por parte do governo de enfrentar o trabalho escravo. “Ainda que a liminar da ministra Rosa Weber seja mantida, o governo tentará de todas as formas impor essa visão retrógrada do conceito de trabalho escravo”, observa. E continua: “Além disso, no Congresso atual, a base governista tem muita força. O governo poderá modificar o conceito por vias oblíquas”.

      Em contraponto ao teor da famigerada portaria, Cavalcanti explica que a escravidão pode ser resumida na apropriação de um ser humano por outro, algo muito mais amplo que a simples proibição de ir e vir. Uma convenção da ONU, de 1926, para muitos a mais importante sobre a questão, nem sequer menciona a restrição de liberdade física como definidora da escravidão, mas destaca o exercício direto ou indireto dos atributos do direito de propriedade.

      “Quando a gente fala do nosso escravo colonial, o bem jurídico violado já não era a liberdade de ir e vir, mas a liberdade enquanto autonomia pessoal, enquanto livre-arbítrio. A portaria do Ministério do Trabalho seria inadequada até no Brasil Colônia”, aponta o procurador.

      No entender da presidente da Comissão de Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravo da OAB-SP, Luciana Barcellos Slosbergas, “não pode prevalecer uma visão simplista quanto ao conceito de trabalho escravo”. A advogada aponta “uma grande desinformação, até dentro da Justiça”, sobre o tema. E sentencia: “A jornada exaustiva, por exemplo, carrega o peso de uma determinada atividade, não importa sua duração, mas as condições degradantes em que ela se dá. Esperamos que o Supremo afirme a inconstitucionalidade da portaria”.

Romero Jucá

Jucá, Paim e as leis brasileiras

      A legislação brasileira considera trabalho escravo qualquer tipo de atividade laboral em que seres humanos sejam submetidos a trabalhos forçados ou degradantes e a jornadas exaustivas. O Código Penal, no Artigo 149, é bem claro quanto a isso e estabelece pena de dois a oito anos de reclusão, que pode ser aumentada conforme o grau de violência aplicada, além de multa.

      A Emenda Constitucional 81, de 2014, ainda não regulamentada, alterou o Artigo 243 da Constituição, conferindo-lhe a seguinte redação: “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber no art. 5º. Parágrafo único: Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei”.

      De uma série de projetos sobre o tema que tramitam no Congresso, chamou a atenção da Revista da CAASP o PLS (Projeto de Lei do Senado) número 432, de 2013, cujo relator, inicialmente, era o senador Romero Jucá, do PMDB de Roraima e atual líder do governo no Senado. O texto de Jucá propunha-se a regulamentar o confisco do bem usado na exploração do trabalho escravo, mas, também, dava nova definição conceitual ao trabalho análogo à escravidão, em termos muito parecidos com os que viriam a ser usados na Portaria 1.129 do Ministério do Trabalho.

      Em nota técnica de 20 de janeiro de 2017, a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria Geral da República / Ministério Público Federal atacou o Projeto Jucá: “O PLS No. 432 / 2013 vai na contramão do avanço e da proteção conquistada no Brasil, ignorando o conceito estabelecido pela legislação penal e redefinindo as hipóteses que podem caracterizar o trabalho escravo, tudo para excluir as modalidades de ‘jornada exaustiva’ e ‘condições degradantes de trabalho’ como condições análogas à escravidão. Verifica-se, assim, que eventual aprovação do projeto representaria enorme retrocesso social, isso porque retiraria da conceituação do trabalho escravo suas formas modernas, relegando-o à figura clássica da escravidão exclusivamente como restrição à liberdade ambulatória”.

      Pressionado, Romero Jucá acabou abrindo mão da relatoria do projeto, que ficou com o senador Paulo Paim, do PT do Rio Grande do Sul. Paim acredita que a Portaria 1.129 começou a ser concebida pelo governo e seus aliados ruralistas logo que ele assumiu o PLS 432. “Eu não abro da mão da jornada exaustiva e do trabalho degradante, as duas coisas que eles não querem que constem”, garante.

      Segundo Antônio Carlos de Mello Rosa, coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Escravo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, o texto de Paim traz alguma evolução em relação ao de Jucá, tendo sido antes discutido de forma “ampla e democrática dentro do ambiente da Conatrae, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, instância correta para se debater qualquer mudança na legislação relacionada a trabalho escravo, pois reúne várias entidades ligadas ao assunto, inclusive do empresariado”.

      O Projeto Paim, contudo, não é redentor. “O projeto atual é um meio termo entre o que diz a legislação hoje e o que tinha sido proposto pelo senador Jucá. Nós não consideramos necessariamente um avanço, mas é um ponto talvez de mais fácil consenso, pois acaba colaborando para dirimir a preocupação de alguns setores com relação a uma suposta subjetividade do conceito de trabalho escravo no Artigo 149 do Código Penal”, avalia Mello Rosa.

      O PLC 432 depende da vontade do senador Eunício Oliveira, presidente do Senado, para ser votado em plenário.

Por uma nova Lei Áurea

      Quantos brasileiros compreendem a concepção contemporânea de trabalho escravo? Certamente, não muitos, tendo em vista a ausência de contextualização histórica das mazelas sociais nativas nas discussões em rodas e redes. “A gente brinca que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea mas esqueceu de assinar a Carteira de Trabalho de todos aqueles negros que estavam sendo libertados. Isso fez com que eles continuassem numa situação de vulnerabilidade que, ao longo da história, os submete a um processo de exploração”, constata Mello Rosa, da OIT. Se hoje os trabalhadores escravizados não são todos negros, a maioria é.

      “Quando você olha as características dos trabalhadores egressos do trabalho escravo, são pessoas em condição de extrema pobreza, não documentadas, com pouca educação, sem oportunidade de qualificação. E muitas vezes elas próprias não têm consciência da sua condição”, descreve Mello Rosa.

      Dentre os milhares de casos relatados por ano no Brasil encontram-se, segundo Vitor Filgueiras, auditor fiscal do Ministério do Trabalho, em artigo publicado no site da ONG Repórter Brasil, os de “trabalhadores obrigados a dormir sob barracos de lona, em chiqueiros, currais, sobre esterco de animais, consumindo água contaminada por agrotóxicos, alimentos em putrefação, ou mesmo mantidos em condição famélica”.

      Líder na exploração de trabalhadores por meios análogos à escravidão, o setor agropecuário não está sozinho: o trabalho escravo persiste também em centros urbanos, onde reinam nesse quesito as áreas têxtil e de construção civil.

      Segundo Antônio Carlos de Mello Rosa, São Paulo exemplifica a exploração de trabalhadores no setor têxtil, com suas confecções estruturadas dentro de residências. “Transformam casas em ambientes de trabalho, já que pela Constituição todo lar é inalienável. Nesses locais, montam-se verdadeiros bunkers de produção de roupas, normalmente submetendo imigrantes que nem sabem que podem se legalizar, muitas vezes com passaporte vencido, dormindo em colchões ao lado das máquinas de costura, com alimentação precária e jornadas realmente exaustivas”, descreve o membro da OIT.

      Na construção civil a situação é igualmente desumana. Pessoas são levadas de lugares extremamente pobres, como o Maranhão, estado de menor índice de desenvolvimento humano do país, para centros urbanos sem qualquer proteção. Ignorantes de seus direitos, acabam submetidos a condições degradantes, dormindo na própria obra, ao lado de materiais de construção, e alimentando-se precariamente.

   “No Aeroporto de Guarulhos houve um problema muito sério. Trabalhadores vieram de Pernambuco, do Ceará, do Maranhão. Foram aliciados para trabalhar nas obras de ampliação. Apesar de terem recebido proposta de trabalho e de chegarem a São Paulo pagando as próprias passagens, não foram admitidos no emprego e ficaram vivendo em situação aviltante, num processo de favelização”, recorda Tiago Muniz Cavalcanti, procurador do Trabalho e coordenador nacional da Conaete.

       De acordo com o Cadastro de Empregadores do Ministério do Trabalho, os exploradores de trabalho escravo no Brasil distribuem-se por setor na seguinte proporção: agricultura – 31,3%, criação de animais – 25,2%, construção – 9,2%, madeireiro – 8,4%, carvão – 6,9%, mineração – 4,6%, outros – 14,4% (neste item enquadram-se joias, lazer, pesca, restaurantes, comércio, energia elétrica e vestuário).

      A última versão da Lista Suja do trabalho escravo foi publicada pelo Ministério do Trabalho em 27 de outubro. A divulgação oficial aconteceu depois de o programa Fantástico, da Rede Globo, antecipá-la. A publicação da lista deveria, conforme norma de semestralidade, ter sido feita em setembro, mas o MT a adiara para novembro. Cento e trinta e um empregadores constam da relação. Detalhe: se a Portaria 1.129 estivesse em vigor, a JBS Aves e a Sucocítrico Cutrale, gigantes nas respectivas áreas, não seriam incluídas, pois não praticaram cerceamento da liberdade de ir e vir dos seus empregados. No casso da JBS, o motivo da inserção na lista é trabalho sem descanso semanal; no da Cutrale, trabalho para pagar dívida.

Prejuízo econômico

      Afora o aspecto mais relevante, o humanitário, há outro, de cunho econômico, que pode fazer o Brasil dar mais alguns passinhos para trás caso concretize-se por aqui iniciativas que minem a transparência na apuração do trabalho escravo. Na maioria dos países desenvolvidos, por exemplo, não entram produtos de empresas denunciadas por trabalho escravo.

      A própria ministra Rosa Weber, ao conceder a liminar contra a Portaria 1.129, ressaltou: “A persistir a produção de efeitos do ato normativo atacado, o Estado brasileiro não apenas se expõe à responsabilização jurídica no plano internacional, como pode vir a ser prejudicado nas suas relações econômicas internacionais, inclusive no âmbito do Mercosul, por traduzir, a utilização de mão de obra escrava, forma de concorrência desleal”.

      Mello Rosa, da OIT, nota que, neste momento, não há risco real de sanções comerciais contra o Brasil, já que nenhum órgão internacional se envolveu na questão por enquanto. “Uma observação empírica é que, hoje em dia, num mundo de economia globalizada, existe uma pressão cada vez maior pelo consumo consciente, tanto de consumidores finais quanto de governos ou empresas multinacionais. Um enfraquecimento na luta contra o trabalho escravo no Brasil, que até há pouco tempo se colocava como referência nesse campo, deixará uma mancha, e entes internacionais podem vir a se posicionar contra o consumo de produtos brasileiros produzidos com trabalho escravo”, alerta.

      Cavalcanti, da Conaete, é menos comedido: “A partir do momento em que não dermos mais transparência, seremos retaliados do ponto de vista comercial. A própria ONU já se manifestou recentemente nesse sentido. É preocupante, tanto do ponto de vista humanitário quanto do econômico”.

      Segundo Martim de Almeida Sampaio, coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, a confirmação de tais retrocessos poderá levar a Organização Mundial do Comércio a alegar que as commodities brasileiras estão sob dumping social, ou seja, convivem com práticas desumanas de trabalho impostas pelo empregador, objetivando reduzir custos e aumentar lucros. “Cláusulas de contratos internacionais colocam a existência de trabalho escravo como impeditivo”, adverte Sampaio, para em seguida lamentar: “Vivemos um triste momento de agravamento da concentração de renda e de perda de ganhos sociais”.

Racismo intrínseco e violência amazônica

      O Frei Xavier Plassat, francês radicado no Brasil desde 1989, é coordenador da Campanha Nacional contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra, ação permanente iniciada em 1997. O trabalho da pastoral nesse campo começou nos anos 70 com a figura carismática de D. Pedro Casaldáliga, que denunciou a existência de trabalho escravo em pleno Século XX. De 1997 a 2017, segundo Plassat, a Comissão Pastoral da Terra identificou 3,5 mil casos de trabalho escravo, dos quais 2,5 mil na Amazônia Legal. O número de trabalhadores envolvidos foi de 93 mil no período (nem todos exercendo precisamente trabalho análogo à escravidão), 52 mil deles na Amazônia. No fim, 27 mil desses trabalhadores foram libertos da condição de escravos.

      “O que muita gente não entende é que a naturalização dessa relação de exploração tem a ver com racismo. Eu acho que é uma herança maldita que o Brasil carrega por nunca ter tratado seriamente o fim da escravidão”, argumenta Plassat.

      Quando a Portaria 1.129 do Ministério do Trabalho foi publicada, a Comissão Pastoral da Terra enviou uma carta denunciando o revés humanitário ao Papa Francisco. “A portaria foi, obviamente, uma tentativa de desmonte total da política de combate ao trabalho escravo, que é de Estado, não partidária”, avalia.

      São conhecidos os métodos criminosos e extremamente violentos de alguns empresários dos setores agrícola e madeireiro na Amazônia. Assim não fossem, não teriam o fim que tiveram personalidades como Chico Mendes e a Irmã Dorothy Stang. O Frei Xavier Plassat conta que ele próprio costuma sofrer ameaças, e que o Frei Henri Burin de Roziers, figura emblemática das lutas camponesas no Brasil, há quatro anos aposentado e hoje vivendo em Paris, passou seus últimos anos no Pará sob ininterrupta proteção policial.

      Por que tamanha pressão? Perguntou a Revista da CAASP ao missionário. “Nós denunciamos pessoas poderosas. Foi a Pastoral da Terra que denunciou a Fazenda Brasil Verde à Comissão Internacional de Direitos Humanos (ver início da matéria). A Brasil Verde pertence ao grupo Quagliato, que é dono de uma dúzia de fazendas e de centenas de milhares de cabeças de gado no sul do Pará. Eu não digo que a Quagliato nos fez ameaças de morte, mas a pressão foi constante”, respondeu Plassat.

      “No Tocantins, eu tive de enfrentar vários casos, um deles contra o senador João Ribeiro (falecido) por exploração de trabalho escravo. Ele ameaçou e processou fiscais e inspetores do Trabalho”, acrescentou.

      Mesmo vivendo em um ambiente que remete ao Século XVIII, de coronelismo, ameaças e escravidão, o Frei Xavier Plassat conserva uma visão otimista do Brasil: “Há grupos de pressão, lobbies, bancadas no Congresso que se fazem porta-vozes de interesses que me parecem bastante minoritários. Eu citei 3,5 mil casos de trabalho escravo. Se, por um lado, é muito, se comparado ao universo de empregadores no Brasil esse número é pequeno”.

Peruanos e filipinos: explorados em São Paulo

     No dia 20 de outubro, Juan aproveitou um descuido da vigilância e fugiu do apartamento em que estava, junto com a mulher, Virgínia, que está grávida. Eles são peruanos e não conheciam quase nada em São Paulo, já que raramente podiam sair do local onde moravam e trabalhavam. Andaram a esmo pelas ruas da cidade, dormiram debaixo de marquises durante uma semana, até que tomaram coragem e foram a uma delegacia de polícia. Uma equipe foi até o apartamento e encontrou outros dois peruanos. Não houve dúvida: era trabalho escravo.

      O dono do apartamento, Ivan Cáceres, foi preso em flagrante por exploração do trabalho escravo e os quatro peruanos foram levados a um prédio na rua do Glicério, perto do centro da cidade, onde funciona a Missão Paz, que acolhe imigrantes de todo o mundo, muitos deles em situação parecida com a dos peruanos. “Eles estavam muito abalados, cansados e com fome, diz o padre Paolo Parise, que é italiano e está no Brasil desde 2010, primeiro como voluntário e agora como dirigente da Missão Paz.

      Em meados de novembro, Juan, Virgínia e os dois conterrâneos deixaram o Brasil. Estavam muito emocionados, e choraram ao abraçar o padre Parise e as voluntárias da Missão Paz.

      Num prédio atrás da Igreja, que parece um colégio interno, funciona a Casa do Imigrante. Foi o único local em que eles encontraram acolhida no Brasil, calor humano, amor, como Virgínia disse ao partir. Fora da Casa do Imigrante, onde permaneceram durante duas semanas, até que acertaram a documentação e partiram, a rotina deles foi de muito sofrimento.

      “Tinha muito pouca comida, a condição era trabalhar, trabalhar e trabalhar. Quem não aceitasse podia ir embora”, conta Juan. O trabalho começava às 3 da manhã e ia até às 10 da noite. Ficavam os quatro no apartamento, sempre sob vigilância. O trabalho deles era confeccionar mochilas para estudantes, todas com desenhos infantis. As mochilas ficavam estocadas na sala. O apartamento tem um corredor pequeno, onde há um quarto, local em que todos dormiam, em duas beliches.

      Quando a polícia chegou, encontrou os beliches com cortinas improvisadas, em nome de uma suposta privacidade. O quarto era bem pequeno. Ao lado, em outro quarto, também pequeno, estavam as máquinas de costura e o material para confeccionar as mochilas. Sobrava pouco espaço para os trabalhadores. No fim do corredor, um banheiro, em condições precárias, era usado por todos.

      Juan e Virgínia chegaram a São Paulo atraídos por um agente de Cusco, no Peru, que lhes ofereceu duas passagens a serem pagas conforme recebessem o salário, proporcional ao número de mochilas que fabricassem — alguns centavos por unidade. No Brasil, desceram no Aeroporto de Guarulhos e foram orientados a pegar um ônibus até o Terminal Rodoviário do Tietê. Ali já havia duas pessoas à espera deles. Foram levados num carro para o apartamento no bairro do Bom Retiro e dali saíram poucas vezes nos meses em que ficaram no país.

      A rotina era desumana, mas por que os peruanos não abandonavam o local? Segundo o padre Paolo Parise, primeiramente porque não tinham dinheiro para comprar passagem de volta ao Peru. Depois, porque são muito simples, com poucos anos de escolaridade e, como viviam em situação de ilegalidade aqui — sem visto de trabalho — tinham medo de serem presos e deportados.

      Ainda assim, Juan e a mulher pensaram em sair. Mas, quando conversavam com o patrão sobre isso, eram desestimulados: “É melhor você ficar aqui. O que vai fazer lá fora?” Em nenhum momento, o patrão abria a porta. Por isso, decidiram fugir quando o patrão se ausentou. 

      Na indústria da costura, flagrantes iguais a estes são frequentes — há inquéritos sobre marcas famosas que contratam serviços desses exploradores —, mas o trabalho escravo está longe de ser exclusividade do setor. Há alguns meses, chamou a atenção o caso de três mulheres que foram trazidas das Filipinas para trabalhar como empregadas domésticas em residências de famílias ricas de São Paulo.

      Elas continuam no Brasil, mas já não trabalham para as mesmas famílias. O caso motivou a abertura de um processo no Ministério do Trabalho, conforme lembra o padre Paolo Parise. Foi ele quem denunciou as famílias, depois que tomou conhecimento de que uma das mulheres filipinas estava sendo submetida a trabalho escravo. Ela tinha jornada excessiva — 16 horas por dia —, sem receber hora extra, e comida racionada. 

      Essa mulher, que tem 35 anos, contou que, uma vez, com fome, pediu um ovo à patroa, e o alimento lhe foi negado. Para não morrer de fome, cozinhou a carne que era servida para o cachorro.

      A Missão Paz tomou conhecimento do caso através de um voluntário, que ouviu a história em uma organização comunitária da Mooca. Com seu relato, levado ao Ministério do Trabalho, auditores fiscais puxaram o fio de um novelo que foi parar num esquema de agenciamento internacional de trabalho. Segundo a investigação, uma empresa chamada Global Talent recruta mulheres nas Filipinas para trabalhar longe de casa. É uma prática antiga, estimulada pelo governo filipino nos anos 90, quando havia uma crise muito grande no país. 

      Mulheres eram convidadas a trabalhar como domésticas na Europa, em países árabes e também na América do Sul. A Global Talent desde então publica anúncios nas Filipinas, com mensagens que prometem o Eldorado longe de casa.

      Nos países recrutadores, a agência também publica anúncios destacando as qualidades das mulheres filipinas. “Os trabalhadores filipinos são considerados em todo o mundo a melhor mão de obra especializada em serviços domésticos — diz a mensagem —, com personalidade alegre, são sempre leais e confiáveis para cuidados com sua casa e sua família”.

      O que não é escrito, mas fica subentendido no texto é a personalidade submissa dos trabalhadores filipinos. Com a vantagem extraordinária de que eles, em geral, falam inglês. Corretores da Global costumam persuadir famílias ricas a contratar mulheres que dominam o idioma para estimular seus filhos a falar inglês. Tudo isso tem um preço: a Global cobra do empregador 13 mil reais para trazer uma boa empregada doméstica das Filipinas, já com o visto de trabalho assegurado. A desculpa é que esse dinheiro deve cobrir custo de deslocamento, mais a comissão da agência.

      Só que o custo é cobrado também das empregadas no país de origem, descobriu o Ministério do Trabalho: elas têm que pagar 8 mil reais para conseguir uma colocação no outro lado do mundo. Em geral, são casadas e têm filhos, mas vêm sozinhas e mandam dinheiro todos os meses para casa.

      Segundo o padre Parise, uma das razões que levavam as mulheres a se submeterem a jornadas extenuantes, sem folga, pouca alimentação e humilhação — houve um caso de uma patroa que jogou fezes de cachorro na cama da empregada — é que a legislação anterior vinculava o visto de trabalho ao emprego previamente acertado. Se deixassem o emprego, perdiam também o visto de trabalho e teriam que voltar para casa. “Além disso, essas agências de recrutamento são semi-mafiosas e elas têm medo da violência”, denuncia Paride. As três mulheres que aceitaram fazer a denúncia foram orientadas a mudar de endereço. Deixaram uma casa na região do Terminal Rodoviário Tietê e foram para o Cambuci. 

      Ainda assim, um mês e meio depois da denúncia, o apartamento delas foi arrombado, roupas reviradas e rasgadas com faca. A polícia descobriu que o atentado foi praticado por três homens — dois brasileiros e um filipino —, que já estão sendo procurados. A foto do filipino foi colocada no site da Interpol.

Em nota, a Global Talent defendeu-se: “A empresa Global Talent repudia veementemente a alegação de que estaria utilizando-se ou agenciando mão de obra de pessoas em condições análogas a de escravos. A empresa Global Talent não contrata estrangeiros, já que seu trabalho é de providenciar e regularizar toda a documentação dos estrangeiros que pretendem trabalhar no Brasil”.

A empresa é investigada pelas autoridades brasileiras, mas quem responde pelo processo e terá que pagar multa são as famílias que submeteram as filipinas a trabalho escravo.