Trump é a nossa cara. Por Hermes Fernandes, bispo evangélico no RJ

Atualizado em 9 de novembro de 2016 às 11:51
Trump recebe as bênçãos de evangélicos em Ohio (REUTERS/Jonathan Ernst)
Trump recebe as bênçãos de evangélicos em Ohio (REUTERS/Jonathan Ernst)

 

De vez em quando, acordo com uma frase na cabeça. E hoje acordei com uma pergunta: “O que o espelho me disse?” Após lavar o rosto, conferi se havia mensagens em meu celular e deparei-me com a inacreditável notícia de que Donald Trump havia vencido a eleição americana. Lá estava eu diante de dois espelhos. O do banheiro refletindo meu rosto ainda cansado e com marcas deixadas pelo tempo, e o da notícia refletindo a imagem do que a sociedade humana está se tornando.

Hoje a humanidade acordou aterrorizada! O que ela viu de tão vil? Sua própria imagem refletida. Quer admitamos ou não, Trump é aquilo em que estamos nos tornando desde o fatídico 11/9. Aliás, você reparou que a data de hoje, 9/11, é a imagem refletida de 11/9 (lembre-se de que o espelho mostra a imagem invertida). Desde aqueles atentados, nunca mais fomos os mesmos. Chegamos a ensaiar alguma esperança, mas ela finalmente se rendeu ao medo. Não buscamos quem nos inspire. Preferimos quem prometa nos proteger. Não queremos quem proponha governa juntamente conosco, mas quem prometa cuidar de nós e de nossos interesses (nem sempre louváveis!).

Ao chegar em casa ontem à noite, não pude entrar porque minha família havia saído e me deixado sem as chaves. Em vez de ficar me lamentando, resolvi aproveitar o tempo vago para caminhar um pouco. Depois de quase uma hora caminhando, passei em frente a uma igreja evangélica, e vendo que, apesar de ser quase dez horas da noite, o culto não havia terminado, resolvi entrar e fazer uma horinha sentado num cantinho discreto no final do salão. Lá em cima, uma pastora elegantemente vestida estava pregando para uma plateia bem entusiasmada. Ela falava sobre os gafanhotos que Deus enviava sobre aqueles que não buscassem corresponder às suas expectativas divinas.

Se a pessoa fosse desonesta, Deus lhe enviaria o gafanhoto cortador. Se fosse daquelas que pulam de igreja em igreja, Deus lhe mandaria o migrador. Se fosse infiel nos dízimos, Deus lhe castigaria com o devorador. E se fosse ingrata com o ministério que a acolheu, Deus lhe entregaria ao destruidor. É obvio que não foi a primeira vez que ouvi tanta asneira. Mas confesso que desta vez, fiquei com o estômago embrulhado. Que lástima ver tanta gente enganada por um evangelho falsificado, balançando a cabeça em assentimento ao que era pregado, feito ovelhinhas de presépio.

A que ponto chegou o povo que antes prezava tanto a verdade. Para serem fiéis, as pessoas precisam ser ameaçadas. Não se trata de ser honesto para não acarretar prejuízo aos outros, e sim para não ser exposto à atuação de espíritos malignos. Não se trata de ser grato movido pela consciência, mas por medo de perder o que se conquistou. O que as move não é o amor, mas o medo e o interesse. E o mais triste é saber que esta versão adulterada do evangelho pregada em boa parte dos púlpitos consegue atrair multidões ávidas por bênçãos, mas sem qualquer compromisso com a ética do reino de Deus. 

É esta massa uniforme de crentes que se submete cegamente a seus líderes, abrindo mão de pensar por si mesma. Nela prevalece a mentalidade de rebanho, desprovida de senso crítico.  E graças a ela, o mundo assiste estupefato à eleição de Donald Trump como presidente da maior potência bélica mundial.

Não se enganem! Foram os evangélicos que o elegeram. E serão eles que poderão eleger Bolsonaro em 2018. Não foi em vão que o nobre candidato já tratou de ser batizado no rio Jordão. Não importa se Trump pretende deportar imigrantes. Não importa se seu discurso é xenófobo, misógino e homofóbico. O importante é que ele seja contra o aborto, o casamento gay, e tudo o que não cabe em nossa moralidade cristã tradicional. E principalmente, ele é a favor do lucro!

A Bíblia, antes responsável por promover a alfabetização da Europa, agora é usada como instrumento de alienação. Basta apontar um versículo e pronto; não se discute mais. Ninguém se dá o trabalho de examinar o contexto histórico e cultural. É preferível acreditar que o pastor sempre sabe o que diz. E assim, passa-se procuração para que outros pensem em nosso lugar.

Já que estamos falando de espelho, que tal dar uma conferida no retrovisor de vez em quando? Cada Apocalipse tem sua própria besta, que por sua vez, necessita de um falso profeta como porta-voz. E pelo jeito, quem assume o papel em nossos dias são os líderes evangélicos midiáticos. Mas por incrível que pareça, este filme não passa de remake. Aconteceu lá trás, no império romano. Aconteceu há poucas décadas com o nazismo. E está acontecendo bem aqui, debaixo de nosso nariz em terras tupiniquins.

O problema é que o monstro que hoje alimentamos será o que nos devorará as carnes no futuro.

Urge que se levantem profetas comprometidos com o bem comum, que tenham culhões para denunciar as intenções destas bestas feras. Profetas que não tenham suas almas etiquetadas. Que não negociem nos bastidores o que dirão aos holofotes. Que renunciem à pretensão de manipular opiniões. Que levem as pessoas a pensarem e não simplesmente a assentirem com suas ideias.

Se não houver entre nós, que se levantem dentre os que não ratificam nossa fé, mas demonstram se importar muito mais com o sofrimento alheio do que aqueles que o fazem.