‘Entrevista com Escritores Mortos’ 15: William Shakespeare

Atualizado em 3 de julho de 2015 às 18:39
"Onde não há prazer, não há proveito"
“Onde não há prazer, não há proveito”

Há cerca de duas semanas, publicamos no Diário uma entrevista fictícia com Liev Tolstói, na qual o célebre autor russo questionava a genialidade de Shakespeare. Achamos sinceramente que o bardo inglês merece a chance de defender sua obra.

Mr. Shakespeare, o senhor foi duramente criticado por Liev Tolstói, um romancista russo que viveu alguns séculos depois do senhor. Se o senhor por acaso encontrasse o célebre Tolstói, de que maneira defenderia sua obra?

Se eu encontrasse esse senhor, diria: “Como advogados procedamos, os quais, embora com calor discutam, depois comem e bebem como amigos”. Muitas vezes, críticas são ofensivas – mas é melhor saber que é desprezado do que sê-lo sob a capa da lisonja.

O senhor é considerado um dos maiores dramaturgos de todos os tempos – se não o maior. Desde que começou a escrever, já imaginava que seria tão bem sucedido? O senhor considera sua obra digna de tantos elogios?

Nenhum poeta deveria escrever sem que, primeiro, a tinta temperasse nos suspiros do amor – a minha tinta temperou nos suspiros do amor, e suponho que a isso deva meu sucesso. É preciso ter uma boa autoestima, uma vez que o amor próprio é um pecado menos grave do que o descuido próprio. Mesmo assim, é raro; contemplo o mundo há muitos anos, e desde que me tornei capaz de distinguir uma injúria de um benefício, nunca encontrei um homem que soubesse como amar a si mesmo.

É necessário se amar sem ser vaidoso? É isso?

A vaidade falaz, corvo insaciável, após consumir tudo, se devora. Uma pessoa muito vaidosa tem em tão alta conta o próprio espírito que tudo mais para ela é sem valia.

Mas e quanto a amar outra pessoa? Como o senhor acha que procede a paixão entre amantes?

O amor não vê com os olhos, mas com a mente… Por isso é alado e, cego, é tão potente. Nunca deu provas de apurado gosto e é um verdadeiro emblema de desgosto. É apelidado de eterna criança, por ser sempre na escolha malogrado. É necessário reconhecer que o mel mais delicioso é repugnante por sua própria delícia, fazendo com que amar seja comprar escárnio às custas de gemidos.

Isso é ruim?

Sim, mas nem tanto. Onde não há prazer, não há proveito.

É muito difícil encontrar uma alma gêmea?

Tal como a sombra, o amor corre de quem o segue: foge, se o perseguir; se fugir, o persegue.

Além de ter escrito lindos sonetos, o senhor escreveu algumas das maiores peças da literatura. Como reconhecer um bom ator? Ou melhor, de que modo um bom ator se porta no palco?

Um bom ator acomoda o gesto à palavra e a palavra ao gesto, tendo sempre em mira não ultrapassar a modéstia da natureza, porque o exagero é contrário aos propósitos da representação, cuja finalidade sempre foi, e continuará sendo, como que apresentar o espelho à natureza, mostrar à virtude suas próprias feições, à ignomínia sua imagem e ao corpo e idade do tempo a impressão de sua forma. O exagero ou o descuido no ato de representar podem provocar riso aos ignorantes, mas causam enfado às pessoas judiciosas, cuja censura deve pesar mais em sua apreciação do que os aplausos de quantos enchem o teatro.

Muitas de suas peças históricas são protagonizadas por reis ingleses. Ao contrário de outros escritores, o senhor não os idealizou; mas também não os retratou (exceto por Ricardo III) como vilões detestáveis. O que o incentivou a manter um ponto de vista relativamente imparcial?

Muitas coisas ou pessoas em si mesmas não são nem boas nem más, é o pensamento que as torna desse ou daquele jeito. Aos homens, sobrevive o mal que fazem, mas o bem quase sempre com seus ossos fica enterrado. As ações más, embora as terras as cubra, não se subtraem aos olhos dos mortais. Os defeitos dos homens são gravados no bronze, enquanto as qualidades são escritas na água.

Isso é curioso. O senhor poderia voltar no primeiro ponto – isto é, que as coisas não são boas nem más em si mesmas? Como assim?

A teia de nossa vida é composta de fios misturados: de bens e de males. Nossas virtudes se tornariam orgulhosas sem os açoites de nossos defeitos, como os nossos vícios se desesperariam se não fossem alentados pelas nossas virtudes. A alma humana é contraditória, e esta é a maravilhosa tolice do mundo: Quandoa s coisas não nos correm bem, colocamos a culpa de nossos desastres no Sol, na lua e nas estrelas, como se fôssemos celerados por necessidades, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbados, mentirosos e adúlteros pela obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda a nossa ruindade atribuída à influência divina. Ótima escapatória para o homem, esse mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode.

Qual é sua opinião sobre a religião e as experiências religiosas?

Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. Quanto às instituições religiosas, considero uma tola idolatria tornar o culto mais solene do que o próprio Deus.

O senhor viveu em uma época em que a honra e a palavra eram muito importantes – na teoria, pelo menos. Muitos de seus personagens arriscaram a vida por sua honra e/ou reputação. O que acha disso?

Não misture essas duas coisas, minha cara. A reputação é um apêndice ocioso e enganador, obtido muitas vezes sem merecimento e perdido sem nenhuma culpa. A honra é diferente. Quem da bolsa me priva, rouba-me uma ninharia; é qualquer coisa, nada; pertenceu-me, é dele, escravo foi de mil pessoas. Mas quem do nome honrado me espolia, priva-me de algo que não o enriquece, mas me deixa paupérrimo. O ser grande não é empenhar-se em grandes causas – grande é quem luta por uma palha, quando a honra está em jogo.

Considerações finais?

Um conselho: Ame a todos, confie em poucos e não prejudique ninguém.