Uma garrafa de cachaça em memória de Lacerda

Atualizado em 16 de abril de 2013 às 5:02

O jornalista e professor Clóvis Pacheco Filho conta como reagiu, em 1977, à notícia da morte de Carlos Lacerda.

Lacerda, o Corvo
Lacerda, o Corvo

O Diário noticiou o pitoresco caso de um mineiro escocês que guardou uma garrafa de uísque durante vinte anos para enxugá-la na morte de Margaret Thatcher.

Foi curioso, mas não inovador.

No Brasil, o jornalista e professor Clóvis Pacheco Filho, conhecido na tribo do Diário como Prof, celebrou de uma forma semelhante a morte de Carlos Lacerda, o Corvo, um obstinado conspirador da direita.

Lacerda tanto fez que derrubou João Goulart, em 1964, com o auxílio dos generais treinados nos Estados Unidos, da CIA e da mídia.

Lamentavelmente, para ele, o golpe não funcionou. Lacerda sonhava virar presidente, derrubado Jango, mas os militares tinham outros planos. Lacerda morreria do coração em 1977. O Prof não ficou exatamente triste, como se pode ver pelo relato abaixo:

Em 1964 eu fiquei mais para lá do que para cá, por motivos óbvios. Acabei comprando uma garrafa de pinga vagabunda e a tomei, em casa, e amarrei uma bela bebedeira. Quando acordei, estava na jaula. Preso, como subversivo, sendo “de menor”…

Meu tio Clovis, o mais querido de toda a família, socialista e advogado, conseguiu fazer com que eu fosse liberado. E com o seu bom senso, por todos reconhecido, falou para mim que nós, oposicionistas, tínhamos de manter a cabeça fria, para reagir ao golpe do modo mais lógico e eficiente possível, e não ir facilmente em cana, como eu fui, levado de maca…

Perguntou de quem eu tinha mais raiva. “Do Lacerda? Pois quando esse canalha morrer, vamos tomar uma cachaça de cabeça, na minha casa!”, disse o tio Clovis. O alambique artesanal era dele.

Desgraçadamente, meu tio morreu alguns meses antes do Lacerda ir ter seu encontro com Belzebu…

E muitos dos amigos daquela ocasião – os tempos de antes do golpe – se perderam, pelos mais variados motivos. Alguns, pela morte. Outros, migrando. Outros simplesmente desistiram e se apagaram. E não foram poucos os que optaram pela adesão ao sistema, e ficaram mais realistas que o rei.

Bem, recebi em 1977 a notícia da morte de Lacerda.

Um garrafão da tal pinga, do alambique situado na chácara do tio, estava em minha casa, já empoeirado. “Coberto pela pátina do tempo”, para usar um de nossos preciosismos.

Reuni a turma do jornal – os que valiam a pena -, na ocasião o Diário Popular, e foi uma belíssima cachaçada, com bastante cerveja depois, torresmo, mortadela, queijo provolone…

E depois, dormimos todos, meio chumbados, na chácara  do colega que cedeu o espaço para nós, espalhados no chão, na camas que existiam, nas redes… E sem medo da cana chegar, que já era o tempo do Geisel e as prisões não se faziam com tanta facilidade.

O Corvo, além disso, ainda era persona non grata do regime, para provocar indignações fardadas. Mas nós não nos sentíamos como quem chuta cachorro morto, de modo algum! Chutávamos é a memória do filho duma puta que tumultuou vinte anos da vida brasileira, eterno inimigo da democracia.

Lamentei a falta do tio Clovis e de alguns amigo já mortos, de outros ausentes da cidade, e comemorei a ausência de outros filhos duma puta que aderiram, também. E muitos desses, hoje, são membros de governos do PT, depois de estágios na Arena e no PDS, do Maluf, e até do PSDB!