Vergonha e vegetarianismo em Kafka. Por Luísa Gadelha

Atualizado em 28 de agosto de 2016 às 13:01
Franz Kafka
Franz Kafka

Texto adaptado de palestra proferida no I Seminário Paraibano de Direito Animal

Todos certamente devem conhecer Franz Kafka, um escritor checo que viveu do final do século XIX ao início do século XX, “o escritor do absurdo”, que deu origem ao adjetivo “kafkiano” e que é mais conhecido pelos romances O processo, uma narrativa labiríntica onde Joseph K é processado por um motivo desconhecido e se perde na burocracia em busca de respostas e A metamorfose, em que o protagonista acorda transformado em inseto, um monstro, uma criatura repulsiva, e a passa a ser rejeitado pela família e confinado em seu quarto.

Kafka era solitário e depressivo, e queimou grande parte de sua obra. Muita coisa foi publicada postumamente por um amigo, Max Brod, a quem Kafka havia pedido que destruísse seus escritos.

Então, é graças à traição desse amigo que conhecemos a obra de Kafka. Max Brod se empenhou em organizar e catalogar seus livros.

Kafka tornou-se vegetariano devido à sua proximidade com o judaísmo, ainda na juventude, o que gerou um conflito com os pais.

Ao fim da vida, Kafka teve que voltar a comer carne por motivos de saúde, era tuberculoso, e pediu para sua irmã Ottla compensar sua falha, tornando-se vegetariana no lugar dele. “Um de nós precisa continuar salvando os animais”, disse ele. Ela manteve a promessa até a morte, em um campo de concentração na segunda guerra.

Max Brod narra uma visita de Kafka ao aquário de Berlim:

“De repente, ele começou a falar com os peixes em seus tanques iluminados. ‘Agora, pelo menos, posso olhar em paz para vocês, eu não os como mais.’ Foi na época em que se tornou vegetariano rígido. Se você nunca escutou Kafka dizendo coisas desse tipo, com sua própria boca, é difícil imaginar quão simples e fácil, sem qualquer afetação, sem o menor sentimentalismo – algo quase inteiramente estranho a ele – elas foram ditas.”

Essa interpretação que trago vem de Walter Benjamin, para quem a vergonha é crucial na obra de Kafka, com uma singular sensibilidade moral. Para Kafka, a vergonha é uma responsabilidade diante de um outro invisível – diante da “família desconhecida”, para usar uma frase de O processo. Uma vergonha íntima – sentida nas profundezas de nossa vida interior e social – algo que sentimos com intensidade.

Utilizamos o adjetivo animalesco num tom pejorativo para nos referir a pessoas que se comportam de maneira impulsiva, agressiva, violenta. O “animal” é uma parte nossa que queremos esquecer. Nossa natureza animal é aquela que reprimimos, que repudiamos, que ocultamos, da qual temos vergonha.

Com isso, acabamos por esquecer nossas similaridades com os animais, como por exemplo a capacidade de sentir dor ou emoções.

Voltando à literatura de Kafka, além da já citada novela A metamorfose, em que o protagonista transformado em animal é repudiado pela família, temos diversos contos  sobre a natureza e animais conscientes. Seus personagens humanos comem carne crua e ensaguentada, numa espécie de recurso para denunciar a barbárie que envolve o consumo de carne.

Chamo atenção especial para os contos Um cruzamento, O abutre e sobretudo Um relatório para a academia.

No primeiro, o narrador descreve um animal singular que possui, um híbrido, um cruzamento de duas naturezas, que é metade gatinho, metade cordeiro. Ao final, destaca a natureza do bicho. “Talvez o facão de açougueiro fosse uma libertação para este animal, mas como o recebi em herança devo evitar isso. Por isso terá de esperar que o alento lhe falte por si, apesar de que, às vezes, me olhe com olhos humanamente compreensivos que incitam a agir compreensivamente”.

Em O abutre, um conto curto, de poucas linhas, o narrador é atacado por um abutre. Um senhor oferece-lhe a opção de ir buscar uma espingarda para matá-lo. O abutre, ouvindo tudo, “eleva-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue”. Há aqui uma inversão, em que o animal tem consciência de que será morto e, então, ataca o humano.

Por fim, o que eu considero o mais interessante, Um relatório para a academia (1917), em que um macaco se finge de humano para fugir do cativeiro. O animal narra sua trajetória e sua transformação em humano, começando por um aperto de mão; “não me atraía imitar os homens, eu imitava porque procurava uma saída, por nenhum outro motivo”.

Nesses três contos observamos animais com consciência do que ocorre à sua volta, com características humanizadas, sejam positivas, como no caso do gatinho-cordeiro, ou negativas, como no caso do abutre que ataca um humo e do macaco, que não se apraz em imitar os homens.

Kafka mostra que a vergonha que sentimos não deveria ser de nossa parte animal e instintiva da qual queremos nos afastar, e sim da matança desordenada e indiscriminada e da indústria do consumo de carne.

A vergonha de saber que 20 entre o número aproximado de 35 espécies de cavalos-marinhos estão ameaçadas de extinção porque são mortas “sem querer” na produção de frutos do mar. A vergonha pela matança indiscriminada, sem nenhuma necessidade nutricional.

Somos culpados pelas mortes que nossa cultura justifica com uma preocupação tão tênue quanto o sabor do atum em lata (os cavalos-marinhos estão entre as mais de cem espécies mortas como “captura acidental” na indústria moderna de atum).

Não estou aqui pra defender o vegetarianismo, compreendo que é uma prática complicada, que requer disciplina, mas defendo que os costumes alimentares devem ser repensados, bem como a criação e o abate de animais.

Para isso, finalizo com uma citação do escritor norteamericano Jonathan Safran Foer, em seu livro Comer animais, de onde algumas ideias desse texto foram retiradas, em que ele diz:

“Existe algo sobre comer animais que tende a se polarizar: nunca os coma ou nunca questione com sinceridade o hábito de comê-los; torne-se um ativista ou despreze os ativistas. Estas posições opostas (…) convergem para a sugestão de que comer animais importa. (…) O consumo de carne levanta questões filosóficas significativas e é uma indústria de mais de 140 bilhões de dólares anuais, que ocupa perto de um terço de todo o território do planeta, molda os ecossistemas dos oceanos e pode determinar o futuro do clima da Terra. Mas ainda parecemos pensar apenas sobre as partes menos significativas dos argumentos – os extremos lógicos em vez das realidades práticas. (…) Muita gente parece se render a esse modelo de tudo ou nada quando discute as escolhas diárias de alimentação. É uma forma de pensar que nunca aplicaríamos a outros domínios da ética. (Imagine mentir sempre ou nunca) (…)

Precisamos de uma maneira melhor para falar sobre comer animais. Precisamos trazer a carne para o centro das discussões públicas do mesmo modo como, com freqüência, ela está no centro do nosso prato. Isso não requer que façamos de conta que teremos uma concordância coletiva. Por mais fortes que sejam nossas intuições sobre o que é certo para nós, e mesmo sobre o que é certo para os outros, todos sabemos de antemão que nossas posições vão entrar em choque com as de nossos vizinhos. O que fazemos com essa realidade inevitável? Interrompemos a conversa ou encontramos uma maneira de reformular as questões?”