“Zero Dark Thirty” é o primeiro filme de propaganda da era Obama

Atualizado em 15 de fevereiro de 2013 às 14:38

A tortura e a fantasia na história da caçada a Osama bin Laden no Paquistão

 

 

Zero Dark Thirty – ou A Hora Mais Escura, no Brasil, com estreia no dia 15 de fevereiro – é um bom thriller de guerra, desde que você o encare como uma fantasia completa, uma espécie de Star Wars na Ásia com barbudos esquisitos no lugar dos stormtroopers. O problema é que, como se trata de um longa baseado em fatos reais, mais exatamente num episódio-chave da trajetória dos EUA, isso fica praticamente impossível. A diretora Kathryn Bigelow disse que seu approach foi “jornalístico”. Se era esse o caso, ela fez o que se espera de um jornalista: distorceu fatos e contou só um lado da história. O resultado é o primeiro filme de propaganda da era Barack Obama.

O filme é sobre caçada a Osama bin Laden no Paquistão. A agente da CIA Maya (Jessica Chastain) é o personagem central. Workaholic, solteira, tensa, Maya incorpora o sentimento americano de vingança ou justiça contra os terroristas. Nos minutos iniciais, ouvem-se os telefonemas desesperados das pessoas presas nas torres do World Trade Center, pouco antes de elas desabarem, sobre um fundo preto. Daí em diante, Maya e seus colegas vão à luta para livrar o mundo do mal absoluto.

 

Maya (Jessica Chastain): caçar bin Laden era uma vendetta pessoal
Maya (Jessica Chastain): caçar bin Laden era uma vendetta pessoal

 

Bin Laden, ficamos sabendo, foi encontrado em seu refúgio em Abbotabad depois que seu mensageiro foi delatado. O nome dele foi obtido após sessões de tortura. Vemos um árabe submetido ao waterboarding – técnica que consiste em aplicar uma toalha na face de uma pessoa e molhá-la até que ela se afogue – e depois colocado numa caixa de madeira que tem a metade de seu tamanho. No início, a heroína, Maya, assiste a tudo impassível, com eventuais arrepios. Até que ela se acostuma e passa a gostar da coisa. A certa altura, quando ela está sozinha com o suspeito, ele lhe pede socorro. Ela se recusa, olímpica, e ainda lhe passa um pequeno sermão. Na sequencia, o prisioneiro entrega os companheiros diante de um prato de faláfel. Mais adiante no filme, outro árabe abre o bico porque, segundo ele, não aguentava mais ser torturado.

A mensagem é clara: não fossem as torturas (ou, no eufemismo oficial, “técnicas aprimoradas de interrogatório”), bin Laden jamais seria capturado. A própria CIA, através de um de seus diretores, Michael J. Morell, negou: “essa impressão é falsa”.

A chegada da cavalaria
A chegada da cavalaria

Os vilões não têm motivação ou razão de ser. A Hora Mais Escura lembra os faroestes dos anos 40 e 50, quando os índios não falavam, eram ameaças da natureza aos brancos e tinham o que mereciam no final. Os árabes são igualmente desumanizados. Eles jogam bombas e se explodem. Ponto. As mulheres usam burca. Os homens são barbudos, sujos, iletrados e andam em bandos. Só existe um muçulmano bom: um chefe da CIA, que aparece rezando em seu tapetinho. O vilão do último Batman, Bane, tem 30 vezes mais diálogos do que qualquer um daqueles selvagens. O torturador-mocinho não pisca e bate sem dó. Ele sabe o que está fazendo. A única cena em que esboça humanidade é quando perde seus dois macaquinhos de estimação.

O escritor Bret Easton Ellis chamou o filme de “dúbio, obtuso e superestimado”. A maior parte da crítica elogiou-o, embora apontando a visão favorável à tortura. É um favorito ao Oscar. Alguns de seus defensores dizem que arte é arte. Kathryn Bigelow afirmou que estava contando uma história, não advogando um ponto de vista, e que seu approach era documental e jornalístico. O jornalista americano Glenn Greenwald comparou-a a Leni Rifenstahl, a cineasta alemã que produziu documentários (tecnicamente impecáveis) glorificando o nazismo. “Eu estava apenas mostrando o que acontecia, não julgando”, Leni dizia.

Numa carta publicada no jornal Los Angeles Times, a diretora disse o seguinte: “Antes de mais nada: eu apoio a primeira emenda, que assegura o direito de criar obras de arte e falar abertamente sem interferência do governo. Como uma pacifista da vida inteira, eu apoio todos os protestos contra a tortura e, simplesmente, tratamentos desumanos de qualquer tipo. Mas eu imagino se os sentimentos expressos não seriam mais apropriadamente endereçados àqueles que instituíram e ordenaram essas políticas nos EUA, e não contra um filme que trouxe essa história para as telas”.

É um argumento cínico. Se você não endossa algo, por que não mostra o lado negativo? Se você não endossa o espancamento em interrogatórios, por que fazer crer que, sem isso, o homem mais perigoso do mundo não seria capturado?

A Hora Mais Escura pode ser encarado como apenas um filme de ação, com todos os clichês do gênero. Você não precisa levar nada a sério. Basta ter em mente que é mentirinha. E, claro, tudo dá certo para os mocinhos. Pena que só no cinema.

 

Kathryn Bigelow e seu approach jornalístico
Kathryn Bigelow e seu approach jornalístico