A diferença entre manifestação e revolta popular

Atualizado em 17 de outubro de 2014 às 17:27

PM do Rio atira com munição letal em manifestantes durante protesto do Dia dos Professores

Desde o inicio das manifestações de junho que o perfil do engajamento é questionado. Tidas como evento de classe média branca, organizadas por universitários da USP, marcadas para ocorrer em áreas nobres como avenida Paulista ou Largo de Pinheiros, obtiveram o desdém de boa parte da população. Era discurso recorrente que, enquanto a periferia não aderisse ou enquanto o morro não descesse para o asfalto no Rio, a coisa não deveria ser levado a sério. Isso sim era algo temido. Que a revolta aflorasse.

Pois bem, ela parece ter tido sua primeira fagulha neste final de semana. Pequena e ainda aparentemente sem indícios de continuidade, não deve ser desprezada (os primeiros protestos do MPL lá em 2011 ou mesmo antes, também não foram observados com atenção e deu no que deu).

Embora as notícias, as polícias e os governos estejam dispostos a jogar tudo no mesmo balaio, o que ocorreu na zona norte no último final de semana é algo diverso (mas nem tão desconectado) das manifestações que se espalham via internet. O que ocorreu foi revolta.

E há diferença? Sim, em número, gênero e grau. Manifestações são marcadas com antecedência, local e horário definidos. A adesão é ideológica.

A revolta explode após o transbordamento da paciência, e exigir racionalidade durante a ocorrência é que é irracional. A manifestação tem queima lenta como a madeira. A revolta é como pólvora.

No mais, não se pode fechar os olhos para o que está ocorrendo. A aparente desconexão entre as manifestações do centro e a revolta da periferia pode ser não ilusória mas apenas momentânea. “Um exemplo é a Turquia. Primeiro a população se manifestou contra a construção do shopping center para defender o espaço verde do local. Depois essa manifestação se transformou em uma revolta contra o governo”, explica Tania Regina de Luca, professora do departamento de história da Unesp (Universidade Estadual Paulista). De fato, já corre nos últimos dias uma aproximação entre manifestantes da “classe média branca” junto à revolta da “periferia”. A página Jardim Brasil Manifestação (local onde ocorreu uma das mortes) criada na terça-feira, já possui 1.629 seguidores em dois dias de existência, com vários participantes de outras causas dando “todo apoio à luta”. Esse muro pode estar para ser derrubado. Todos já vimos que é possível a união fora do facebook também. Ali é só o começo.

O Jaçanã, imortalizado por Adoniran Barbosa como um bucólico e longínquo bairro paulistano, aproximou-se do centro com a velocidade de um trem-bala. Ganhou as manchetes pelo que há de mais brutal no Brasil: a desigualdade.

As mortes de dois adolescentes, executados por PMs no intervalo de 24 horas, acenderam o pavio da revolta. Revolta porque o garoto Douglas Rodrigues (17 anos), pegou o trem das onze mais cedo do que devia. Revolta porque o garoto Jean Nascimento (17 anos), foi condenado à morte em situação ainda nebulosa.

São situações inimagináveis nas manifestações centrais da cidade. Em duas oportunidades (em 11 de junho e no recente 25 de outubro), policiais chegaram a sacar suas armas e apontar contra manifestantes. Mas não houve disparo. Nem mesmo diante do espancamento de um coronel. Na periferia, o buraco é mais embaixo. No mesmo Jaçanã, há cerca de um ano, sete pessoas foram mortas num intervalo de apenas quatro horas dois dias após um soldado da Rota ser baleado. À época, vizinhos contaram que viaturas estiveram duas vezes no local antes da chacina realizando abordagens em busca de informações a respeito dos autores do atentado contra o policial e eram informados de que não deveriam ficar na rua depois das 20 horas. Toque de recolher oficial.

Na periferia, não só a polícia atira primeiro para perguntar depois, como o tratamento dado durante a reação popular é muito mais violento do que os presenciados nas regiões centrais. Mães e avós dos garotos assassinados foram intimidadas pela ronda policial até mesmo durante entrevistas à redes de TV. Isso é muitas vezes mais cruel que as bombas de gás e balas de borracha atiradas, aí sim idênticas tanto na avenida Paulista quanto na rua Bacurizinho do Jardim Brasil.

Como consta em um post de um morador: “Verme não quer saber não! E sabe de uma coisa? Se fosse um morador de Perdizes quem tivesse sido assassinado, queria ver se haveria ASPAS na palavra inocente. Tem polícia que não tem respeito com ninguém, que dá tiro assim de graça, porque se é preto e da perifeira FODA-SE né? E depois que o povo se revolta, ainda acham ruim. Porque eu digo, essa POLÍCIA MILITAR tem que acabar, enquanto houver esses vermes o Brasil não vai ter paz, pelo menos não na periferia.”

Isso é revolta, não manifestação.