A fabulosa descoberta das calouras da Escola de Medicina da USP

Atualizado em 19 de novembro de 2014 às 23:28
Faculdade de Medicina da USP
Faculdade de Medicina da USP

As calouras e estudantes de medicina da USP, quem diria, conseguiram isolar o vírus do ebola da medicina brasileira.

Se a descoberta houvesse ocorrido nos laboratórios da faculdade, mereceriam o Nobel da medicina brasileira. Mas não foi assim: elas próprias foram as cobaias de um experimento empírico distante das bancadas de laboratório e próximo das perícias forenses.

A denúncia de uma estudante estuprada durante uma festa da “Atlética” – a associação espartana que mantém o departamento esportivo do Centro Acadêmico Osvaldo Cruz – destampou uma caixa de Pandora. Caixa não, um baú. A partir dela e com a determinação da vítima em levar o caso às últimas consequências, foi formada uma comissão interna de apuração.

O professor Paulo Saldiva – presidente da comissão que investigava as denúncias, reconhecido por suas pesquisas sobre os efeitos da poluição atmosférica e querido pelos alunos – jogou a toalha. Abandonou a comissão, pediu afastamento da faculdade e saiu atirando:

“Precisamos incorporar o conteúdo de respeito à dignidade humana ao currículo. Chega de intenção. É preciso prática. E isso também tem que chegar até os professores. Não adianta só culpar os alunos”.

Em outras palavras: o exemplo vem de cima. E o exemplo que vem de cima é péssimo.

Até a anestesia da Assembléia Legislativa do estado foi interrompida pelo deputado Adriano Diogo, presidente da Comissão de Direitos Humanos, que convocou uma audiência pública para acolher essa e outras denúncias. Segundo a Rede Brasil Atual, o diretor da faculdade José Otavio Costa Auler Junior procurou o deputado, aos berros, para tentar impedir a audiência. Em vão.

O estudante Felipe Scalisa publicou depoimento na página 3 da Folha sobre a audiência. Foram relatados oito casos recentes de violência nas dependências da faculdade, incluídos dois estupros. “Nosso maior ensinamento na graduação é o pacto de silêncio, o consentimento passivo como grande instrumento de manutenção de estruturas nas quais aprendemos a lidar e a conviver com a corrupção no mundo”, apontou. E concluiu: “A educação médica humanizada é de interesse de todos e merece o olhar coletivo para sua construção. A sociedade deve definir que tipo de médico quer ver sair dessas instituições e, a partir daí analisar se certas práticas são adequadas ou não”.

As práticas de nossos futuros médicos, porém, não estão circunscritas aos muros universitários. Elas incluem muitos outros, como os do túnel da avenida Paulista na esquina com a avenida Dr. Arnaldo – o fundador da escola de medicina que dá nome ao endereço da faculdade. Ali, como fazem desde 1991, segundo eles mesmos, estudantes da escola tingiram de negro um enorme mural, de algumas centenas de metros quadrados, pintado durante três dias de dezembro passado por duas dúzias dos melhores grafiteiros paulistanos.

Tudo para comemorar nada mais, nada menos, do que a realização do Festival de Direitos Humanos da cidade. Que foram substituídos por um anúncio do Show Medicina, um evento promovido há setenta anos, que o grafiteiro Chivitz considerou mais uma daquelas “festinhas do grêmio”, embora sua direção seja independente dele. Chivitz não passou recibo: “Tal atitude demonstra uma total falta de respeito com a arte e cultura de rua, principalmente quando vinda desta classe que se julga a “nata intelectual” de nossa sociedade! E agora doutores, como se trata essa ferida?”

A ferida acabou sendo tratada pelo próprios aspirantes a doutores após um acordo com a coordenadoria da juventude da prefeitura. Eles pagaram tudo, com recibo: tintas, materiais e os grafiteiros que pintaram um novo painel, com a ajuda do prefeito Haddad, que desenhou um Pato Donald.

Há pouco, um amigo que frequentou a piscina da Atlética descreveu-me uma cena que presenciou ali certa noite. Um bando de alunos completamente embriagados, cada um com uma garrafa de bebida nas mãos, pulava e mergulhava sobre os demais nadadores, e bebia dentro da piscina. Preocupado, ao sair meu amigo alertou ao porteiro sobre o risco de afogamento de algum – ou alguns – deles. A resposta não foi menos preocupante: Ih moço, isso aí é sempre assim. Daquela vez que morreu aquele estudante chinês, então, nem se fala! Pelo visto o porteiro é antigo e a caixa de pandora só contém segredos de polichinelo.

O estudante chinês é Edison Tsung Chi Hsueh. Ele morreu afogado em 1999 durante um trote, naquela mesma piscina em que meu amigo se assustou com esse perigo recentemente. Edison, que não sabia nadar, foi atirado n’água repetidamente, até não resistir e ser abandonado sem socorro. O julgamento definitivo dos responsáveis por sua morte só ocorreu em julho de 2013, e todos foram absolvidos por falta de provas. Os argumentos do advogado de defesa José Roberto Batochio, acolhidos pelo supremo Supremo, embora cirúrgicos, são a causa – e não a cura – da hemorragia que as calouras tentam estancar.

“Os fatos ocorreram há 14 anos. Hoje eles [os acusados] não são mais estudantes. São médicos, professores. Guilherme é o maior especialista em mastologia. Tirico estava no Jornal Nacional como pioneiro de transporte de cartilagem. Nós não vamos mais processar estudantes. Vamos processar professores de medicina. São cidadãos prestantes. Qual é a utilidade social disso?”, publicou o G1.

A flagrante injustiça cometida pela Justiça foi de tal ordem que até o ex-presidente do STF Joaquim Barbosa tentou impedi-la, em vão: “Estamos chancelando a impossibilidade de punição a quem cometeu um crime bárbaro. O Supremo Tribunal Federal está impedindo que esta triste história seja esclarecida”

Barbosa tem toda razão. Não se tratava apenas de punir criminosos. Tratava-se de desinfetar a medicina brasileira. Esse seria mais um exemplo de cima, que não veio.

Além de pintar um novo mural no lugar do que foi destruído por eles, os jovens futuros doutores comprometeram-se a realizar uma “ação social no Glicério, no centro da cidade, com o objetivo de sensibilizar a formação dos futuros médicos para questões sociais”, segundo a Prefeitura. Já passou da hora de incluir as ciências humanas no currículo das escolas de medicina. E não só: direito, engenharia, odontologia, economia, administração e outras também. Estamos formando gente ultracompetitiva que sabe tudo sobre algumas coisas, e quase nada sobre nós, os outros e eles próprios.

Mas Violeta Parra tinha razão. Ainda resta uma esperança:

Me gustan los estudiantes
que marchan sobre la ruina.
Con las banderas en alto
va toda la estudiantina:
son químicos y doctores,
cirujanos y dentistas.
Caramba y zamba la cosa
¡vivan los especialistas!