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A grande arte de José Rico

José Rico

 

“Fazer sucesso é fácil. Difícil é manter. O cara faz um sucesso e já quer ser dono do mundo. A arte não gosta disso. A arte e o artista têm uma diferença muito grande. O artista passa e a arte fica”.

Essas palavras não foram ditas por David Bowie, Gilberto Gil, Picasso ou pelo vocalista daquele trio de Manchester ou do interior do Texas que só aquele seu amigo descolado conhece.

O autor, o falecido José Alves dos Santos, o José Rico, criou com o amigo Romeu Januário de Matos, o Milionário, um dos maiores fenômenos da história da música brasileira.

A dupla vendeu mais de 30 milhões de discos em mais de 40 anos de carreira. Um sucesso popular inegável, estrondoso — esnobado e mal compreendido por críticos e historiadores da canção nacional.

Zé Rico era a primeira voz (nas duplas sertanejas, quem faz a primeira voz é o segundo nome). O estilo deles era a chamada música de fronteira, com mistura de bolero, guarânia, polca. Havia também influência mexicana. A moda de viola havia ficado para trás.

O pernambucano José Rico e o mineiro Milionário se encontraram em São Paulo pintando paredes e decidiram cantar juntos. Estouraram no final dos anos 7o. Em 1980, Nelson Pereira dos Santos, mestre do Cinema Novo, dirigiu “Estrada da Vida”, sobre a trajetória da dupla. É a maior bilheteria de Nelson.

Zé Rico era feio e só usava óculos escuros por causa de um problema nos olhos. Um cruzamento de Elvis fase Las Vegas com algum pistoleiro de faroeste de Sergio Leone. Tudo coberto de joias douradas. Eram recusados em programas de TV por causa do visual.

Em 1986, fizeram o que Roberto Carlos nunca fez: foram se apresentar na China. A turnê durou por volta de trinta dias e passou por várias cidades.

Foi fruto de um intercâmbio cultural. No início dos anos 80, o Brasil cedeu cópias da cinebiografia de Nelson Pereira dos Santos para os chineses. A coisa explodiu.

Anos depois, um pedido oficial da China: que a dupla fosse para lá. “Me ligaram do Itamaraty perguntando se eu sabia quem eram Milionário e José Rico e se era possível levá-los”, diz Wilson Souto Jr, então presidente da gravadora Continental. “Ninguém tinha ideia de quem eles eram”.

A companhia tentou chamar uma equipe de jornalismo da Globo para a cobertura. Conseguiu pagar o Globo Rural, que iria aproveitar e produzir uma matéria sobre a “agricultura milenar asiática”.

Teatros com 20 mil lugares lotaram. “Em cada aldeia havia pelo menos 200 caras fantasiados como eles”, lembra Wilson. Na China pré-BRICS, eles eram reis.

No Brasil, nunca viraram cult. Continuaram fazendo som para o povão, sem mudar um milímetro para agradar outro público — não é essa a “autenticidade” festejada por bandas como, digamos, Nirvana? Jamais receberam a bênção de Chico ou Caetano, como Criolo. Não precisaram, também.

Seus sucessores cairam no gosto de uma classe média, colocaram um terninho bonito, tomaram banho, passaram perfume e o sertanejo é hoje o gênero número 1 do país. Alguns deles estavam no enterro do colega e ídolo em Americana, juntamente com uma multidão de fãs.

“Este é o exemplo da vida para quem não quer compreender: nós devemos ser o que somos, ter aquilo que bem merecer”. Grande José Rico, grande artista. RIP.

 

Kiko Nogueira

Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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Kiko Nogueira

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