E se Serra tivesse ido para a esquerda e não para a direita?

Atualizado em 17 de julho de 2014 às 23:58

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“Se em certo momento

Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;

Se em certa altura

Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;

Se em certa conversa

Tivesse tido as frases que só agora, no meio sono,

elaboro –-

Se tudo isso tivesse sido assim,

Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro

Seria insensivelmente levado a ser outro também.”

O poema acima, chamado “Na Noite Terrível”, é de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa.

É o trecho mais interessante de Cinquenta Anos Esta Noite, o livro em que Serra conta suas memórias da juventude. Elas vão do golpe, quando Serra era presidente da UNE, até sua volta do exílio, em 1977.

Serra diz, no livro, que sugeriu a Eduardo Frei que lesse o poema de Álvaro de Campos.

Frei fora presidente do Chile antes de Salvador Allende. Era um homem de centro. Na gestão de Allende, Frei foi um opositor tenaz.

Isso facilitaria as coisas para o golpe do general Augusto Pinochet, em 1973.

Frei jamais se perdoaria por não ter percebido o que vinha. Morreu amargurado por não ter apoiado Allende quando talvez ainda fosse possível evitar Pinochet.

Foi num encontro em São Paulo, alguns anos depois do golpe, que Serra lhe recomendou a Frei “Na Noite Terrível”.

Não foi uma recomendação capaz de abrandar a dor de alma de Frei, naturalmente. Na verdade, era uma lembrança a mais para Frei de que ele cometera mesmo um erro brutal.

Serra parece jamais ter tido muita sensibilidade para confortar os aflitos, mas não é isto que quero sublinhar. É a ironia que se encerra no poema.

Alguém hoje poderia sugerir a Serra o mesmo que ele sugeriu a Frei: ler “A Noite Terrível”.

E se Serra, em certo momento, tivesse se voltado para a esquerda e não para a direita?

O essencial, na resposta, é que o PSDB não teria se transformado no que é hoje: um partido conservador, ossificado, destituído de charme, de ideias e de sentido.

O PSDB, sob Serra, foi progressivamente se tornando uma versão moderna da UDN. Sua maior força é o apoio torrencial da imprensa, como acontecia com a UDN, e sua bandeira oportunista é o “combate à corrupção”.

O PSDB não foi sempre isso, o abrigo e a esperança da plutocracia. Em sua origem, refletia a social democracia europeia, como diz seu próprio nome. Era de centro-esquerda.

O PSDB acabaria se encaminhando para a direita, e com isso deixaria livre o espaço do centro-esquerda para um PT que entendeu que com sua plataforma original de esquerda não chegaria ao Planalto jamais.

Na guinada conservadora, o PSDB perdeu não só o rumo – mas a ética. Serra foi vital nisso. Alguns episódios são memoráveis.

O Atentado da Bolinha de Papel, por exemplo, na campanha de 2010. Em 2012, Serra mostrou que podia descer ainda mais baixo. Como candidato à prefeitura de São Paulo, tentou num debate derrubar Haddad com a lembrança insistente de que este é amigo de Dirceu.

O livro, em si, pega o período menos interessante da vida de Serra. Você tem que gostar muito dele para se interessar por sua trajetória entre 1964 e 1977.

Serra viraria personagem relevante na política brasileira depois disso.

Haveria muito mais sentido em memórias dos dias do PSDB no poder. Serra teve grandes brigas com a equipe econômica de FHC e foi importante no processo de privatizações.

Como ele as vê hoje? Muita gente compraria um livro em que Serra se debruçasse sobre isso.

Também haveria farto material nas duas tentativas de Serra de se tornar presidente. Na primeira, em 2006, ele esteve com a taça nas mãos.

Lula parecia nas cordas sob o Mensalão, e a crença da mídia em que Serra venceria era tanta que Diogo Mainardi escreveu um artigo que começava assim: “Exatamente daqui a um ano Serra estará subindo a rampa do Planalto.”

Naqueles dias, vistas as coisas em retrospectiva, Serra fizera já o mesmo movimento de Eduardo Frei na gestão de Allende.

Fora, irremediavelmente, para a direita, abraçado à imprensa, e arrastara com ele seu partido.