Como os EUA constroem o apoio ao golpe no Brasil

Atualizado em 9 de março de 2018 às 23:13
Brian Winter, da revista Americas Quarterly, e Moro em evento da AS / COA em Nova York

Artigo publicado no Brasil Wire, de autoria de BRIAN MIER. O DCM deu anteriormente esta outra excelente matéria sobre a AS/COA

(tradução de Sônia Maia)

Quando Luis Inácio Lula da Silva assumiu a presidência em 2003, um de seus primeiros passos foi priorizar um software de código aberto para os sistemas do governo federal com o objetivo de reduzir custos, aumentar a concorrência, gerar empregos e desenvolver o conhecimento e a inteligência do país nessa área.

Embora nunca tenha sido amplamente adotado por todos os ministérios, até 2010 essa iniciativa representou uma economia de mais de R$ 500 milhões para os contribuintes. Em outubro de 2016, seis semanas depois de assumir o poder, enquanto reduzia de R$ 42 para R$ 16 milhões os fundos para programas à mulheres vítimas de violência doméstica sob a desculpa de que não havia como pagar, o presidente Michel Temer anunciava que o governo iria gastar R$ 140 milhões na migração dos sistemas de informática para produtos da Microsoft. A Microsoft não é a única empresa que se beneficiou do golpe de 2016 contra Dilma Rousseff.

A Boeing está em marcha na conquista de uma participação com poder de controle sobre o conglomerado aeroespacial de capital misto Embraer,  terceiro maior fabricante de aviões do mundo, considerado um orgulho nacional para os brasileiros. Depois de se reunir com os diretores da Monsanto em fevereiro de 2018, o governo de Temer anunciou planos para legalizar o uso do herbicida Glifosate, da Monsanto, recentemente proibido na Europa.

Em outubro de 2017, pouco depois de lançar o leilão de oito campos de petróleo em alto mar para corporações internacionais, como a Chevron e a Shell, Michel Temer assinou um decreto presidencial de redução de impostos para as companhias de petróleo estrangeiras que trabalham no Brasil, estimado em R$ 1 trilhão. Microsoft, Monsanto, Boeing, Chevron e Shell se beneficiaram financeiramente com a mudança de regime no Brasil.

O que mais essas empreas têm em comum? Todas são membros corporativos da Americas Society / Council of the Americas (AS/COA), o think tank que, sob o pretexto de cuidar do povo latinoamericano, vem apoiando políticas de austeridade e governos de direita na região desde sua fundação por David Rockefeller na década de 60.

A revista da AS/COA, a Americas Quarterly, está voltada para um público de elite, é distribuída em salões VIP de aeroportos em todo o continente e distribuída como bônus à associados, com custo de adesão individual a partir de 10 mil dólares ao ano.

Sua função principal, no entanto, parece ser a de relações públicas, alimentando notícias corporativas favoráveis na mídia de todo o hemisfério, incluindo frequentes aparições da equipe de AS/COA na CNN, NBC, Bloomberg, NPR (National Public Radio); agências de notícias como a Reuters e AP (Associated Press News); e em jornais que abrangem desde a região do famoso jornal Clarin, da Argentina, ao Los Angeles Times.

Os links para esses artigos, e aparições em TV e rádio, estão detalhados no site da AS/COA, e facilmente disponíveis para quem deseja quantificar essa direção oblíqua ou buscar padrões narrativos. Escolhi analisar os padrões narrativos dos feeds de mídia da AS/COA em dois períodos: de 24 de fevereiro de 2017 a 24 de fevereiro de 2018, e durante os três meses anteriores à remoção de Dilma Rousseff, que aconteu no dia 13 de maio de 2016.

As recentes prioridades da AS/COA

Entre 24 de fevereiro de 2017 e 24 de fevereiro de 2018, a equipe do AS/ COA apareceu ou foi citada em matérias da mídia norteamericana 102 vezes (excluindo temas como arte, que deixei fora dessa análise). Isso inclui 39 matérias sobre a Venezuela, 13 sobre o NAFTA (Tratado Norteamericano de Livre Comércio) e 7 sobre o Brasil.

As matérias sobre a Venezuela, o país com as maiores reservas de petróleo do mundo, podem ser classificadas como “propaganda para mudança de regime”. Não há tentativa alguma de fornecer uma cobertura equilibrada em qualquer dos artigos assinados pela equipe do AS/COA, como, por exemplo, falar com qualquer cidadão da classe trabalhadora venezuelana, cuja maioria ainda apoia o regime de Maduro.

A linguagem é semelhante à usada para descrever países como a Líbia antes das operações militares dos EUA. A Venezuela está em estado catastrófico, a democracia desabou, o país está em crise. Como Eric Farnsworth, da AS/COA, diz à CNN: “Há pessoas na Venezuela que estão literalmente famintas. O quadro é apocalíptico. Chamaria a Venezuela de um estado falido”.

Embora a fome seja um fenômeno terrível, está presente em todas as nações das Américas. De acordo com o WHES – World Hunger Education Service (Serviço Mundial de Educação Contra a Fome), em 2015, 6,3 milhões de famílias americanas sofreram níveis extremamente baixos de segurança alimentar. É altamente duvidoso que qualquer pessoa da AS/COA cite esta estatística para chamar os EUA de um estado falido.

As treze matérias sobre o NAFTA são exemplares, pois ilustram um objetivo de longo prazo do AS/COA e seu fundador e ex-diretor David Rockefeller para reforçar os acordos neoliberais de livre comércio. Rockefeller influenciou a criação do NAFTA e da fracassada FTAA, e a AS/COA está entre os maiores líderes apoiadores desses polêmicos acordos.

Embora o NAFTA não tenha cumprido suas promessas sobre os benefícios para a classe trabalhadora, pela linguagem dos artigos, a AS/COA e seus patrocinadores corporativos visivelmente apoiam a continuação do NAFTA e estão preocupados que Donald Trump esteja prejudicando o acordo.

Sete matérias sobre o Brasil que apareceram na mídia norteamericana no ano passado incluem conteúdos da AS/COA. Duas mostram uma estratégia contínua para tratar a polêmica e partidária equipe da Lava Jato como super-heróis, começando pela capa da Americas Quarterly de 2016, que mostra Sergio Moro travestido de “Caça-Fantasmas” (como no famoso filme Ghostbusters).

Moro tem sido amplamente criticado no Brasil e no exterior por passar por cima da lei ao divulgar para a TV Globo conversas telefônicas gravadas ilegalmente entre Lula e Dilma. Tem sido criticado por não processar qualquer membro do PSDB, incluindo nomes de peso como José Serra e Aécio Neves, envolvidos em uma série de subornos envolvendo milhões de dólares, além de escândalos sobre financiamentos ilegais de campanhas.

Sergio Moro tem concentrado a maior parte de seus esforços no que parece ser uma tentativa de evitar que o ex-presidente Lula concorra à presidência em 2018, com base em acusações sem provas físicas de que Lula teria feito reformas ilegais em um apartamento em frente à praia, inteiramente ancoradas no testemunho de um empresário corrupto, que mudou sua história inicial para implicar Lula, em troca de redução de sentença.

Sergio Moro foi também acusado de conflito de interesses, porque sua esposa, Rosângela Wolff de Quadros Moro, era advogada de Flávio Arns, durante sua gestão como vice-governador do Paraná pelo PSDB. Em dezembro de 2017, o advogado da Odebrecht, Tacla Duran, denunciou a equipe da Lava Jato de administrar uma indústria de redução de sentenças através do escritório de advocacia de Rosângela, a Zucolotto Associados. Sergio vem sendo acusado de pressionar empresários a mudar suas alegações para implicar Lula.

Vem sendo acusado, ainda, de adulterar registros financeiros da Odebrecht. Foi acusado de comportamento sádico depois de ordenar, em 22 de setembro de 2016, que a polícia prendesse o ex-Ministro da Fazenda, Guido Mantega, dentro do hospital Albert Einstein durante a sessão de quimioterapia da esposa, a psicanalista Eliane Berger, que faleceu no ano seguinte.

Foi acusado, em um artigo compartilhado no site do Exército brasileiro, de destruir cinco discos rígidos de evidências físicas de suborno entregues pela Odebrecht, uma ação amplamente interpretada como um movimento para proteger políticos do PSDB.

Moro foi recentemente acusado de violações éticas ao descobrirem que reside em um apartamento de luxo de 256 m2, cujos aluguéis são pagos via subsídio judicial. Foi acusado de perseguir legalmente seus críticos, como quando ordenou que a polícia invadisse a casa do estudioso de Direito, Rafael Valim, que organizou um seminário com o advogado da Comissão de Direitos Humanos da ONU, Geoffrey Robertson, no qual a equipe da Lava Jato era criticada por fazer uso de lawfare (guerra jurídica).

E, o mais importante, foi acusado de sabotar a economia paralisando as maiores empresas de construção do Brasil em 2015, em vez de tratá-las como “grandes demais para caírem”, em um movimento que causou 500 mil demissões no setor de construção e, de acordo com um estudo citado pela BBC, uma queda de 2,5% no PIB brasileiro. Mesmo assim, nenhum desses eventos resultou em qualquer dúvida por parte da AS/COA sobre a ética e agenda de Sergio Moro. Em recente artigo na Foreign Policy, o vice-presidente da AS/COA, Brian Winter, apresenta Moro como o Teddy Roosevelt do Brasil.

O candidato da eleição presidencial de 2014, Aécio Neves (PSDB), teve cinco acusações de recebimento de suborno da ordem de R$ 3 a 50 milhões. Em suma, todas essas acusações são muito mais graves do que alegadamente receber reformas em um apartamento, o que resultou em uma pena de prisão contra Lula de 9,5 anos.

Em um de seus últimos movimentos antes de demitir-se como Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot pediu à Suprema Corte que retirasse todas as acusações contra Aécio Neves. A AS/COA ignorou esse fato, usando o New York Times para prestar uma homenagem a Janot, comparando-o a um soldado em luta na construção de um Estado de Direito.

Tanto Janot como Moro escreveram para a Americas Quarterly e a AS/ COA regularmente patrocina suas idas à Nova York para conversas. Ambos foram homenageados em um evento da Americas Society/Council of Americas em Nova York em 2 de março último.

AS/COA durante a manipulação do golpe

No livro Merchants of Doubt (Os Mercadores da Dúvida), Naomi Oreskes e Erick M. Conway documentam como think tanks e fundações financiadas por corporações têm trabalhado, nos últimos 50 anos,  para confundir deliberadamente o público sobre a questão das mudanças climáticas, a fim de enfraquecer o apoio à regulamentação das emissões de CO2. Uma estratégia comum usada por essas instituições e seus fantoches é desacreditar a ciência, espalhar confusão e promover a dúvida.

Ao analisar a influência da AS/COA na mídia durante o período de 3 meses antes de Dilma Rousseff ter sido forçada a deixar a presidência, ficou claro tratar-se de uma tática para confundir o público norteamericano sobre se estava acontecendo um golpe de Estado. Além disso, essa campanha estilo “tráfico da dúvida”, promovida pela AS/COA na mídia, via Americas Quarterly e seus funcionários no Twitter, conseguiu moldar a narrativa dominante das publicações nortamericanas sobre o golpe, reproduzidas mesmo em publicações ostensivamente liberais, como o inglês The Guardian, que mencionou a palavra golpe apenas entre aspas.

De acordo com a narrativa da AS/COA sobre o impeachment, Dilma Rousseff não foi derrubada por ter praticado pedaladas fiscais: 1) ela foi posteriormente exonerada; 2) é prática comum no Brasil em áreas dos governos municipais, estaduais e federais; e 3) a prática foi legalizada uma semana depois de Dilma ter sido expulsa do cargo. De acordo com o vice-presidente da AS/COA e editor da Americas Quarterly, Brian Winter, que não é economista, Dilma caiu por manipular a economia.

Não soa confuso alguém argumentar, ao mesmo tempo, que não foi um golpe, enquanto afirma que a razão oficial para o impeachment é inválida? Durante o período dos três meses anteriores ao 13 de maio de 2016, quando Dilma foi atirada fora da presidência, o AS/COA alimentou 29 matérias na mídia norteamericana. Quatorze delas eram sobre o Brasil. As três principais mensagens da organização nesses artigos são: 1) Não foi um golpe; 2) As instituições democráticas do Brasil estão funcionando; e 3) O impeachment é positivo para o Brasil.

Em 3 de maio de 2016, Brian Winter enfatizou todos esses três pontos durante uma participação sobre o tema na rádio NPR (National Public Radio) junto com outros três comentaristas neoliberais. A votação do impeachment ainda estava por acontecer. O arquiteto do impeachment, Eduardo Cunha, ainda não tinha sido preso por ter recebido US$ 1,5 milhão em subornos e lavagem de dinheiro. As informações de que um proeminente corretor de ações subornou membros do Congresso para votarem a favor do impeachment ainda não tinham sido divulgadas nos meios de comunicação.

Mesmo assim, um loquaz e otimista Brian Winter  já explicava que não era um golpe. “É um golpe?”, ele disse. “Não, não acho que seja um golpe”, continuou, enquanto levantava a dúvida: “Seria mesmo um caso frágil para um impeachment, especialmente quando você tem toda essa corrupção como pano de fundo? Isso é discutível”.

Enquanto o Congresso brasileiro, cuja maioria dos membros enfrentava, por si, acusações de corrupção, se preparava para expulsar a primeira mulher presidente do Brasil por um tecnicismo que ela não cometeu, Winter dizia: “É realmente um progresso, porque é resultado de um poder judicial independente e outras instituições, como a mídia. E até mesmo o maligno Congresso, trabalhando mais ou menos como deveria “.

Como em outras aparições na mídia durante o início do golpe, Winter expressou confiança no processo “frágil” de impeachment, dizendo: “Não está claro como isso vai acabar no Brasil. O sucesso não é garantido. Mas, no momento, parece uma coisa positiva “. Duas semanas antes, Brian falou ainda mais positivamente sobre o impeachment ao Christian Science Monitor, dizendo que o Brasil estava “à beira de uma mudança de maré na política “.

Parte do trabalho para confundir o público envolveu reprimir os temores de que o Brasil esteja à beira de um retorno à ditadura. Como Michel Temer passou a segurança do Estado do Rio de Janeiro para os militares, que estão cometendo abusos de direitos humanos contra uma população principalmente negra e pobre, e como o general Walter Braga Netto diz que o Rio é um projeto piloto para o resto do Brasil, há de se perguntar por que um porta-voz do AS/COA entraria na Rádio Pública Nacional para dizer: “Em meio a todo esse caos e todas essas coisas inacreditáveis que aconteceram no ano passado, sempre digo às pessoas que a única coisa que absolutamente não acontecerá no Brasil é um golpe militar “.

Enquanto uma classe de intermediários, marionetes dos EUA, vendem os recursos naturais e o patrimônio tecnológico brasileiro para corporações internacionais, as empresas que financiam o AS/COA estão preparando seus bolsos. Muitas dessas companhias são grandes anunciantes das maiores empresas de mídia.

São elas confiáveis na produção de jornalismo objetivo sobre o Brasil?

Como disse uma vez Noam Chomsky, “se você abandonar a arena política, alguém estará lá. As empresas não irão pra casa pra se juntarem à Associação de Pais e Mestres. Vão comandar as coisas.”