Ciro Gomes diz que Lula é “criminoso” e “pôs dinheiro no bolso”. Por Miguel do Rosário

Atualizado em 14 de julho de 2021 às 16:34
Ciro Gomes na Globo. Foto: Reprodução/Globo

Publicado originalmente no site O Cafézinho

POR MIGUEL DO ROSÁRIO

Em entrevista ao jornalista Roberto D`Ávila, que foi ao ar na Globonews nesta terça-feira à noite, Ciro Gomes voltou a fazer ataques pesados ao ex-presidente Lula.

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É relativamente fácil provocar Ciro. Basta mexer um pouquinho onde lhe dói, como a história de Paris.

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Numa entrevista com youtubers despolitizados, sem formação jornalística e sem malícia, como são os apresentadores do Flow Podcast, Ciro Gomes consegue falar durante quatro horas quase sem falar em Lula, PT ou Paris, e manter uma postura sempre equilibrada.

Mas o grande teste de políticos que aspiram cargos executivos de grande responsabilidade é justamente seu jogo de cintura para fugir de cascas de banana e manter a serenidade em qualquer circunstância.

Roberto D`Ávila, entrevistador experiente, com a necessária malícia de um jornalista profissional que não está ali para dar “palanque” a político, conseguiu desestabilizar Ciro logo nos primeiros minutos, ao dizer que ele, ao sair do Brasil no segundo turno de 2018, “ajudou a eleger Bolsonaro”.

O pedetista fechou a cara e respondeu violentamente, dizendo que isso era uma narrativa do PT, e que ele, “como democrata”, não tinha obrigação de participar de uma campanha liderada por um “criminoso”

Ciro não parou aí.

Logo em seguida, ele voltou a dizer que “Lula é o maior corruptor da história moderna”; dessa vez acrescentou que o petista “pôs dinheiro no bolso”, ao se referir aos cachês de palestra que a  Odebrecht pagava ao ex-presidente. “Eu também faço palestra, eu cobro 15 ou 20 mil reais. Eu posso não ter o charme do Lula, mas tenho muito mais conteúdo do que o Lula tem. E o mundo tem um padrão.”

Segundo informações públicas na internet, o ex-presidente dos EUA, Barack Obama, cobra US$ 400 mil por palestra. Os Clinton faturaram mais de $150 milhões de dólares em palestras entre 2001 e 2015. Realmente o mundo das palestras tem um padrão alto para ex-presidentes. Se Ciro Gomes se eleger presidente da república por duas vezes, e sair do governo com altos níveis de aprovação popular, provavelmente conseguirá elevar seu cachê.

Ao ouvir as acusações tão pesadas ao ex-presidente Lula, o entrevistador comenta – notei ironia?- que Ciro, com esse discurso, deverá “perder uma parte, pelo menos, dos votos da esquerda, e que na “direita empedernida ou na extrema direita, o senhor não terá votos, onde é que o senhor pretende buscar seus votos?”

O ex-ministro diz que a esquerda brasileira é muito “confusa”, sobretudo a “esquerda petista, ou “psolista”, ou “pecedobista”, e que irá procurar construir alianças. O apresentador o interrompe para perguntar se ele não teme que suas falas não atrapalhem essas alianças. Ciro rebate que é “preciso qualificar essas alianças, senão é ajuntamento ou formação de quadrilha”. Ele ri ao mencionar “formação de quadrilha”.

Opinião do blog: parece-me evidente que Ciro chutou o pau da barraca. Suas falas não correspondem a um político com perspectivas reais de poder. Porque não faz sentido. Um projeto nacional de desenvolvimento, aos moldes do que ele defende, apenas seria possível com apoio dos partidos, quadros, movimentos e organizações de esquerda. Os partidos de direita não dariam sustentação a esse projeto.

Além disso, suas referências a Lula se tornaram simplesmente difamatórias, e podem lhe render condenações judiciais pesadas.

De certa forma, a coragem de Ciro Gomes é realmente um fenômeno, embora nem sempre ela venha acompanhada de inteligência política. Quando Lula estava condenado e na iminência de ser preso, e era execrado pela maioria da opinião pública, Ciro vinha a público fazer uma defesa feroz do ex-presidente, afirmando que o petista teria sido vítima de uma sentença injusta. Não havia, ao tempo, nenhuma fala de Ciro que desabonasse Lula pessoalmente. Não lhe chamava de corrupto, e jamais diria que “Lula pôs dinheiro no bolso”, que é uma acusação vulgar.

Hoje, quando Lula se vê livre de todos os processos judiciais, quando sua rejeição despenca a cada pesquisa, quando passa a ser disputado pela imprensa internacional e nacional, além de liderar as pesquisas de intenção de voto, o ex-ministro Ciro Gomes parte para ataques de baixo calão a Lula?

Esta semana, circulou a notícia de que o apartamento de Ciro, no valor aproximado de 400 mil reais, foi leiloado em função de um processo de difamação movido pelo ex-presidente Collor. O imóvel foi comprado por um inimigo político de Ciro, o ex-senador Eunício Oliveira. Ciro tem outras condenações por difamação. Não surpreenderia se mais um processo, dessa vez de Lula, se somasse a essa lista. Por mais que a militância cirista tente transformar esses processos numa espécie de “heroísmo político” do ex-ministro, está claro que eles também revelam uma postura no mínimo imprudente, quase irresponsável. O próprio Ciro cunhou um slogan político bonito: ideia, exemplo, militância. Xingar gratuitamente adversários políticos, abrindo o flanco para condenações judiciais, não é exemplo para ninguém.

A crítica póstuma do professor Wanderley

Lembro-me do meu amigo, o professor Wanderley Guilherme dos Santos, que era um fã, um eleitor e um defensor de Ciro Gomes, nas eleições de 2018. Uma das razões que o professor Wanderley dava para seu apoio a Ciro era que o resto da esquerda, principalmente o PT, tinha “perdido a compostura”. O golpe de 2016, a condenação e depois a prisão de Lula tinham desestabilizado boa parte da esquerda, que passara a cometer alguns erros políticos, na opinião do professor, além de ter perdido a capacidade de diálogo com as principais forças econômicas da sociedade.

Entretanto, em 2019, o professor Wanderley Guilherme, assim como muitos eleitores de Ciro Gomes, já começava a se espantar com o caminho seguido pelo pedetista, especialmente com as críticas exageradas, udenistas, ao PT e a Lula.

Eu costumava visitar o professor com alguma frequência, sob variados pretextos, como entrevistá-lo, pegar livros emprestados. E aí conversávamos sobre séries, filmes, literatura e política. A decepção com Ciro já era notória, tanto que nem falávamos muito dele, ambos levemente constrangidos. Uma vez ele mencionou uma entrevista de Ciro em que se referia ao PT como “bando de ladrão”. Seu comentário foi apenas uma careta. Eu ergui os ombros.

Em outra oportunidade, enquanto me servia um café expresso na cozinha, ele disse que Ciro estava “perdendo votos”, provavelmente pensando em amigos ou familiares que haviam votado no pedetista, mas que agora haviam se distanciado, ainda em virtude das críticas muito emotivas, abaixo da cintura, a Lula.

O professor faleceu em outubro de 2020, e fui privado de um grande amigo e de sua opinião. Mas acho que seus últimos comentários deixam bem claro que ele não aprovaria a postura atual de Ciro Gomes.

Uma consequência extremamente nociva dessa postura de Ciro é alimentar uma cultura fortemente udenista junto a sua militância. Se Lula é um “criminoso”, e se Lula é seu principal adversário dentro do campo progressista, então qualquer um que faça críticas a Ciro é automaticamente tratado por essa militância como cúmplice de um bandido.

Se esse udenismo se radicalizar, ele pode flertar com o fascismo, que é a criminalização gratuita de qualquer divergência política.

Voto impresso e PL da Grilagem

Os problemas de Ciro Gomes não se resumem às cascas de banana que ele mesmo joga à sua frente.

Ele ainda tem de lidar com um partido incrivelmente desconectado da realidade. No exato momento em que Bolsonaro ameaça um golpe de Estado, ao dizer que “não haverá eleições”, caso não seja aprovado o voto impresso, e fazer inúmeras acusações contra a integridade do nosso sistema eleitoral, os dois deputados do PDT que integram a Comissão do Voto Impresso tem manifestado uma defesa entusiástica do projeto. Um deles, o deputado Pompeu de Mattos, do Rio Grande do Sul, fez uma postagem, dias atrás, na véspera da última ameaça de Bolsonaro às eleições, dizendo que o sistema eleitoral brasileiro “é o pior do mundo”.

A posição do deputado não é dissidente; ao contrário, é a posição oficial do partido, pois o próprio presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, fez postagem há pouco tempo dizendo que “sem impressão do voto, a fraude impera”. Após a repercussão negativa, o próprio Ciro veio em sua defesa, somando-se à mesma bandeira.

E agora, nessa terça-feira, o PDT orienta seus deputados a votarem em favor da Urgência do chamado “PL da Grilagem”, um projeto execrado pelas organizações ambientalistas e pelo público progressista de maneira em geral. A própria militância cirista reagiu com perplexidade.

Não adianta se alegar que o PDT não votou propriamente a favor do projeto, mas apenas em favor da urgência da votação, porque isso não faz sentido. Quando se vota a urgência de um PL, impede-se a formação de comissões e audiências, que dariam tempo para a sociedade se mobilizar e discutir o teor dos projetos. Votar em favor da urgência de um projeto é a mesma coisa que votar em favor de sua aprovação.

Há momentos em que um partido progressista precisa tomar decisões duras, inclusive na contramão de sua própria militância, em virtude de cálculos pragmáticos. Fazer isso estando na oposição, porém, é a primeira vez que vejo. Fazer isso quando se tem um candidato a presidência da república, é outro exotismo.

Além disso, dar qualquer espaço para que o governo Bolsonaro amplie a destruição de nossas florestas é um erro terrível, do ponto-de-vista ético e político. Um projeto nacional de desenvolvimento moderno precisa ser, antes de tudo, sustentável e ambientalista!

Ciro Gomes se vê hoje num momento bem difícil. Parece que o PDT, de tanto ver Ciro dando tiro no próprio pé, transformou isso numa estratégia e resolveu fazer o mesmo.

A propósito, a íntegra da entrevista de Ciro pode ser assistida aqui: