Como ler um romance segundo Virginia Woolf

Atualizado em 27 de outubro de 2014 às 11:45
Ginny
Ginny

Em sua série de entrevistas transcendentais, nossa colunista Camila Nogueira ouve da romancista inglesa Virginia Woolf seus conselhos sobre como ler um romance.

Olá, Ginny. Um dos ensaios mais célebres que você já escreveu diz respeito à maneira como devemos ler e interpretar os romances que lemos. Quais são os principais conselhos que você pode nos dar sobre a arte da leitura?

O único conselho que uma pessoa deve oferecer à outra sobre ler é: não aceite nenhum conselho, siga seus próprios instintos e use sua própria razão para chegar às suas próprias conclusões. Se isso já está claro, sinto-me a vontade para oferecer-lhe algumas ideias e sugestões – pois sei que você não permitirá que elas acorrentem aquela independência que é a qualidade mais importante que um leitor possui.

Afinal das contas, o que pode ser dito sobre literatura? A batalha de Waterloo aconteceu em determinado dia; mas Hamlet é uma peça melhor do que Rei Lear? Ah, ninguém pode dizer. Cada um deve decidir isso por conta própria. Admitir autoridades em nossas bibliotecas e permitir que os outros nos ensinem o que ler, como ler e onde ler é destruir o espírito da liberdade que é essencial para tais santuários. Em qualquer outro lugar, somos escravos das leis e das conveniências – em nossas bibliotecas, respondemos apenas a nós mesmos.

De qual modo podemos compreender os elementos que compõem um romance?

Talvez o modo mais rápido de compreendê-los não seja lendo, e sim escrevendo. A partir do momento em que começamos a escrever, nos tornamos capazes, através de nossa própria experiência, de compreender os perigos e as dificuldades que envolvem o uso das palavras.

Ginny, há algo que me deixa intrigada sempre que leio a autobiografia ou as memórias de determinado personagem histórico: fico pensando o que é melhor – confiar cegamente na palavra do autor, considerá-lo um unreliable narrator e desconfiar de todas as suas afirmações ou deixar a narrativa fluir e não pensar muito na veracidade ou não dos fatos presentes no texto. Qual é a sua opinião sobre isso?

É comum que escolhamos um livro com a mente dividida e ofuscada, perguntando se a ficção pode ser verdadeira, se a poesia pode ser falsa, se a biografia pode ser lisonjeira e se a história nossos próprios preconceitos. Se pudéssemos banir todas essas pré concepções, antes de ler, seria um começo admirável. As questões colocadas por você estão sempre presentes quando lemos memórias e cartas, e precisamos respondê-las por conta própria, pois nada pode ser mais fatal do que ser guiado pela preferência alheia em um assunto tão pessoal. Mas, já que quer minha opinião pessoal, devo dizer que você pode ler autobiografias, memórias e cartas com outro objetivo, deixando de lado a vontade de se familiarizar com pessoas famosas e tentando apenas refrescar e exercitar seus próprios poderes de criação.

E qual é a relação ideal a ser estabelecida com o autor?

Não decrete nada ao autor, tente se tornar ele. Seja seu companheiro e cúmplice. Se você hesitar, ou até mesmo criticar o romance logo em seu início, estará impedindo a si mesma de aproveitar ao máximo o valor do que lerá. Abra sua mente; então, sinais e dicas de uma delicadeza quase imperceptível a levarão até a presença de um ser humano único. Apresente-se e logo perceberá que o conhecimento que o autor está lhe oferecendo, ou tentando lhe oferecer, é algo muito mais preciso. Ler um romance é uma arte complexa e difícil. Você deve possuir não apenas uma percepção delicada como uma intensa ousadia imaginativa se pretende fazer uso de tudo o que o romancista – o grande artista – está lhe oferecendo.

Ginny, não pude deixar de notar que você está sempre mencionando algo que o autor tem a oferecer para os leitores, conquistado quando aproveitamos ao máximo o valor do que estamos lendo. Como podemos fazê-lo?

O primeiro processo, que é acolher impressões com a mais elevada compreensão, é apenas metade do processo da leitura; e, se desejamos receber todo o prazer que um romance é capaz de nos oferecer, precisamos completá-lo com uma segunda parte. Isto é, precisamos julgar cada uma das impressões; tais formatos efêmeros devem ser transformados em uma única forma, forte e eterna. Mas não diretamente. Termine o romance; espere o conflito e o questionamento se aplacarem; ande, converse, arranque as pétalas de uma rosa, ou adormeça. Então, repentinamente, o romance retornará e se apresentará de modo diferente, quase mágico.

A mesma lógica se apresenta para obras de poesia?

O impacto da poesia é tão difícil que, no momento em que a declamamos, não há nenhuma outra sensação além da do próprio poema. Que profundezas visitamos então, e como é súbita e completa a nossa imersão! O poeta é sempre nosso contemporâneo. Nosso ser se torna centrado e restrito, como em um choque violento de emoção. Depois, é verdade, a sensação começa a se espalhar pela mente; sentidos remotos são atingidos, coemeçam a ressoar e comentar e é como se estivéssemos cientes de ecos e reflexões. A intensidade da poesia envolve uma infinidade de emoções.

Muito obrigada, Ginny. Algo a acrescentar?

Eu fantasiei algumas vezes que, no dia do Juízo Final, grandes conquistadores e advogados e estadistas estariam esperando por suas recompensas – suas coroas, seus louros, seus nomes esculpidos indelevelmente no marfim imperecível –, e o Todo Poderoso se voltaria para Pedro e lhe diria, não sem certa inveja ao nos contemplar, aproximando-nos com livros em nossos braços: “Olhe, esses daí não precisam de qualquer recompensa. Não temos nada para lhes dar aqui. Eles amaram a literatura”.