Como mulher, Mírian Dutra foi abusada por FHC. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 17 de fevereiro de 2016 às 12:19
Mírian em foto do Facebook: abandono,  silenciamento e  boicote
Mírian em foto do Facebook: abandono, silenciamento e boicote

Mirian Dutra é o nosso novo exemplo público de relacionamento abusivo. Uma mulher livre, inteligente e independente que – como tantas mulheres livres, independentes e inteligentes no mundo – não ficou imune a viver um relacionamento destrutivo em todos os sentidos.

Isso deve servir para nos convencer, de uma vez por todas, que relacionamentos abusivos não estão resumidos à violência física: há o abuso psicológico, o abuso emocional, o abuso patrimonial e tantos outros sobre os quais só pode se manifestar quem tem vivência para isso.

O abandono, o silenciamento e o boicote sofridos pela jornalista e ex de Fernando Henrique Cardoso são tão violentos quanto uma surra

Exilaram-na de seu país, destruíram suas chances na carreira, transformaram-na em uma mulher solitária e cheia de mágoas.

Talvez Mirian Dutra ainda não saiba, mas ela não viveu uma história de amor. Ela viveu uma relação de poder, como muitas de nós vivemos e não nos damos conta.

A posição política de Fernando Henrique Cardoso (que, na época dos abusos, era indiscutível) só serviu de aparato para que ele pudesse mais facilmente dominar a relação – mas os argumentos, estes são exatamente os mesmos de que todos os abusadores do mundo lançam mão: “Sou casado, mas temos uma relação fraternal;” “eu não estou te perseguindo, não quero te deixar porque te amo”; “você não é só uma distração, você é o meu pé na realidade”.

O típico pai ausente e marido infiel, que mantém uma relação extra-conjugal com uma mulher trinta anos mais jovem e a manipula para que ela jamais seja um problema em sua carreira política.

O homem que não precisa usar a força para violentar. Violenta com palavras, com desmandos, com boicotes… violenta mostrando que, como verdadeiro macho-alfa, ele está no controle. E ela, uma jornalista em fim de carreira, o que pode fazer para defender-se além de gritar aos quatro ventos que foi manipulada por um canalha por uma vida inteira?

Mírian Dutra poderia ter se casado, crescido na carreira e criado seus filhos com pais presentes. Ela poderia ter sido uma mulher comum e feliz, se, numa noite qualquer, não tivesse encontrado em um Happy Hour o homem que destruiria a sua vida, sorrateiramente (como ela mesma declarou), sob o pretexto de amá-la.

Ela poderia ter sido feliz se o homem que amou não fosse tão poderoso (e tão inescrupuloso). Sim, nós já vimos esse filme. Ele se repete com a dona de casa de classe média, com a universitária jovem e bonita que abre mão de si em nome do “amor”, e com a jornalista bem-sucedida que tem a vida apagada por um ex-amante abusador.

É isso que acontece quando uma sociedade inteira nos convence de que o amor é a coisa mais importante de nossas vidas. Que, em nome dele, precisamos nos doar, nos calar, nos submeter. É esse o resultado quando somos convencidas o tempo todo da nossa fragilidade: nós endeusamos o amor e os homens que amamos, e acabamos apagadas e exiladas de nós mesmas.

“Eu não vivi com um Presidente da República,  eu vivi com um homem”, ela diz. Do mesmo modo, não estamos falando de jogadas políticas sórdidas – embora tenhamos material suficiente para isso, em se tratando de FHC – estamos falando de relacionamentos abusivos. E é assim que eles funcionam: você tenta sair e não consegue. Como a própria Míriam tentou, durante dois anos, e jamais conseguiu. Como Dona Ruth provavelmente deve ter tentado. Como a secretária de FHC, agora sua esposa, certamente tentará.

O que queremos é que cada vez mais mulheres – sejam donas de casa, jornalistas, estudantes, desempregadas… – compreendam, como Míriam compreendeu, que “o amor não é tudo”. E que continuem gritando aos quatro ventos o quão devastador um relacionamento abusivo pode ser.

Queremos ouvir as Mírians, as Ruths, as Marias, as Teresas… Queremos que cada vez mais homens “respeitáveis” como FHC sejam desmascarados por quem verdadeiramente pode fazê-lo: suas mulheres, tão poderosas, mas sempre tão ardilosamente convencidas de que o silêncio é a melhor resposta (como Míriam foi convencida nas últimas décadas).

Haverá homens aos montes para acusarem esse texto de vitimismo (eu quase já posso ver), mas, antes disso, procure na sua própria família: o nosso exemplo de relacionamento abusivo está sempre muito perto de nós. Basta que tenhamos empatia para reconhecê-lo.

E nós te entendemos, Míriam. FHC também fez muito mal ao Brasil.