Como o filme “300” virou cartilha de fascistas no mundo até chegar ao acampamento de Sara Winter

Atualizado em 30 de maio de 2020 às 12:57
Imagem: reprodução

Lançado ainda em 2007, 300, de Zack Snyder, conta a história dos 300 soldados espartanos envolvidos na luta contra os 30 mil invasores persas na Batalha de Termópilas durante as Guerras Persas. O filme se baseia nos quadrinhos de Frank Miller e Lynn Varley, uma releitura de ficção dessa passagem histórica.

Treze anos depois, com a eleição de Donald Trump como presidente dos EUA em 2016 e de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil em 2018, podemos avaliar como a estética do filme, bastante violenta e nacionalista, inspirou movimentos da extrema-direita na Europa e também no Brasil.

Snyder foi bastante fiel aos quadrinhos de Miller, procurando fazer com que até a paisagem ecoasse a profundidade dos livros do quadrinista.

Robert Rodriguez também recriou uma história em quadrinhos de Miller em Sin City (2005). Mas Snyder foi ainda mais marcante em sua fidelidade porque buscou recriar a visão de mundo de Miiller – bastante católica e conservadora, de acordo com seus críticos.

Num texto publicado no site AV Club, o crítico Tom Breihan aponta como 300 de Esparta é um filme machista, racista e fascista, glorificando a sociedade espartana, construída em cima da escravidão e da pedofilia institucional. Numa tradução livre:

“300 conta uma história real, ilustrando a Batalha de Termópilas, onde espartanos e outros gregos defenderam sem sucesso uma travessia de um número enorme de invasores persas, resistindo por uma semana até morrer em combate.

Para Miller, os espartanos eram heróis inequívocos, hábeis e mortais guerreiros que resistiram às forças da escuridão com extrema força de vontade. Nas mãos de Snyder, o rei espartano Leônidas e seus companheiros fazem inúmeros discursos sobre liberdade e autodeterminação. (…) o modo de vida espartano é representado como uma espécie de jeito megamacho de ser, um espírito guerreiro de mente e coração. Uma nação de Rambos”.

300 começa com uma cena que, literalmente, glorifica o fascismo. Vemos um abismo cheio de crânios de bebês considerados indesejados. Leônidas não tem deficiências visíveis, então ele consegue viver.

Então, quando criança, ele é doutrinado na sociedade guerreira, ensinado a lutar ou morrer e depois é enviado para sobreviver por conta própria.

Abandonado na neve, o Leônidas adolescente mata um enorme lobo criado em computação gráfica, emulando os quadrinhos. Snyder apresenta tudo isso como uma desgraça –  e encampa a tese de que os espartanos estavam certos em matar todos os bebês deficientes, já que é um fugitivo corcunda que trai Leônidas.

Sara Winter: modelo clássico

Somente os fortes e resistentes podem ser espartanos, diz um dos soldados. Os espartanos são todos fortes e andam seminus, como saídos de um filme pornô gay – na realidade, os espartanos tinham pesadas armaduras – que lhes davam vantagem sobre os persas. Há ainda os gritos e as palavras de ordem, para além de violência abundante.

Já no lado persa, as coisas parecem mais divertidas; o buraco da orgia, que aparenta ser uma espécie de inferno gender-fluid, parece mais agradável que qualquer lugar de Esparta. Xerxes aparece como um sedutor de mais de 2,5m com voz grave e um rosto cheio de piercings (…). Há dois mensageiros de pele muito negra, a tropa de elite de Xerxes mais parece uma horda de ninjas orientais. Os vilões são tão diversos que quase não parecem humanos.

Mas 300 também é um filme influente de outra maneira, mais insidiosa. Podemos dizer que ele é o prototexto da alt-right”. 300 é uma espécie de grandioso e mítico espetáculo do cliché de defender a “pátria branca”, pois o filme glorifica a raça pura europeia a defender a Grécia da invasão de uma horda de peles-escuras. Tal tipo de lorota ajudou a criar uma visão de mundo capaz de eleger Trump – e seu capacho brasileiro – presidente. É um filme influente para o bem e para o mal – e merece ser lembrado por isso”.

Como isso desemboca em Sara Fernanda Giamini (me recuso a escrever seu apelido fascista e ridículo), o inquérito sobre as fake news e Alexandre de Moraes? A referência ao filme “300” está explícita no nome do movimento de extrema-direita “300 pelo Brasil”, de Sara Winter.

A co-fundadora, Desire Queiroz, em entrevista à Agência Pública, explica: “mostra que nós somos poucas pessoas que podem vencer muitos.” Mas as semelhanças não acabam aí.

Na Europa, movimentos de extrema-direita se inspiram no filme: para eles, a batalha dos espartanos contra persas representa a luta atual dos “verdadeiros europeus” contra os “invasores” refugiados. Segundo a pesquisadora e jornalista alemã Carina Book, o filme virou referência para a extrema-direita também pelo discurso de sacrifício pela nação e resistência violenta contra ‘invasores’.

O grito de guerra “Ahu” dos soldados espartanos, usado pelos “300 do Brasil”, também aparece nas manifestações do Movimento Identitário na Europa, que defende a ideia de sociedades “culturalmente puras”.  Em vários protestos e shows, neonazistas fazem referência ao filme e aos espartanos. No site da marca de moda neonazista Ansgar Aryan há inclusive um moletom com a imagem de um soldado espartano.

Os “300 do Brasil” convidam pessoas para doar ao país “sangue, suor e sono”. O caráter paramilitar dos “300 pelo Brasil” se assemelha ao filme. Os militantes chamam-se de “soldados”. Frequentemente fazem saudações militares, prometem treinamentos e reivindicam uma disciplina rígida. Aqui, só consigo lembrar da célebre frase de Marx sobre a História – primeiro, ela acontece como tragédia; depois, somente como farsa.

Passou da hora do Supremo Tribunal Federal, a Polícia Federal, o Ministério Público e o poder Judiciário tratarem os “300 de Brasília” por aquilo que são – uma falange a serviço do regime Bolsonaro. A menos que queiramos ver aqui repetida a história das falanges de Mussolini.