Delação sem Judiciário e Globo é como falar da Igreja sem citar o papa. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 17 de abril de 2017 às 17:12
Cunha e João Roberto Marinho da Globo

 

A respeito das delações da Odebrecht, que alguns muitos chamam de delações do fim do mundo, três coisas precisam ser ditas:

1) Se os números assustam, é preciso saber que se trata de UM esquema dentre VÁRIOS que existem – não se constrói maioria em parlamento no Brasil, seja em Xiririca da Serra ou no Congresso em Brasília, sem propina, e quem paga a propina são os fornecedores do Executivo.

2) Faltam delatados na delação do fim do mundo – Judiciário e grandes veículos de comunicação participaram deste banquete, mas agora que a conta está sendo paga, eles saíram de fininho.

3) No que realmente importa, um País livre da corrupção, não vai dar em nada. O que está havendo é uma troca de elenco.

Alguns são expulsos de campo e trocam-se os treinadores eos jogadores, tudo para que o jogo de cartas marcadas continue.

Sobre os esquemas: na década de 90, o mesmo Sérgio Moro, já juiz federal no Paraná, colocou a mão em algo gigantesco. As contas CC5 do Banestado.

Era a forma como políticos e empresários enviaram dinheiro da corrupção e da sonegação para fora do País.

Em 2003, houve uma CPI Mista no Congresso Nacional, que não deu em nada.

A exemplo do que se vê hoje, dezenas de inquéritos foram abertos em consequência das investigações, mas, muito provavelmente como acontecerá com os casos atualmente em apuração, não deu em nada.

Descobriu-se que o equivalente a 19 bilhões de dólares sem origem declarada foi enviado para o exterior e só 17 milhões de dólares repatriados.

Ninguém foi efetivamente punido.

Havia indicações de políticos do PSDB por trás de algumas contas.

José Serra, por exemplo, é citado numa perícia da PF como um dos responsáveis por uma conta chamada Tucano – isso mesmo, Tucano — , que recebeu quase 177 milhões de dólares entre 1996 e 2000.

Nos bastidores da CPI, que tinha um tucano como presidente e um petista como relator, era do conhecimento de todos de que na selva do Banestado tinha uma floresta de tucanos e de políticos ligados ao PFL (depois DEM) e uma meia dúzia de árvores petistas.

Houve um grande acordo e a CPI terminou sem relatório.

A mídia praticamente ignorou o caso. Nas contas do Banestado, também foi descoberto dinheiro da Rede Globo.

Em 2009, a Polícia Federal colocou a mão no caixa 2 da construtora Camargo Corrêa e descobriu que essa contabilidade não oficial irrigava as contas de políticos ligados ao PSDB.

Descobriu-se até uma anotação que constrange o jornalista Reinaldo Azevedo. Sem nome antecede uma flechinha apontando para Andrea Matarazzo e a cifra 50 mil.

Em 2011, o então presidente do STJ, César Asfor Rocha, concedeu liminar que anulou toda a investigação, liminar que foi depois confirmada unanimemente pelo plenário da corte, a partir do voto da relatora Maria Tereza de Assis Moura.

O argumento central aceito pelo STJ é que a investigação tinha origem em uma denúncia anônima.

César Asfor Rocha é o ministro cujo filho advogou para o empresário Carlos Alberto Fernandes Filgueiras, o dono do hotel Emiliano, que morreu no acidente de avião com o ministro Teori Zavascki.

O filho de Asfor Rocha conseguiu no STJ numa vitória que o advogado Carlos Miguel Aidar, que já presidiu a OAB no Estado de São Paulo, considerava impossível.

O filho de Asfor Rocha anulou a penhora do hotel Emiliano, obtida por uma família que negociou com Filgueiras uma área nobre em São Paulo para a construção de apartamentos, e não recebeu um centavo por isso.

O relator do processo era um ministro do mesmo Estado de Asfor Rocha, Ceará, com nomeação que era tida, no meio jurídico, como apadrinhada por ele, de resto um frequente hóspede do Hotel Emiliano e comensal de Filgueiras em jantares no restaurante do chef Alex Atala.

Maria Tereza é a ministra que, recentemente, concedeu prisão domiciliar para a advogada Adriana Ancelmo, mulher de Sérgio Cabral, sob o argumento de que ela precisava cuidar dos filhos.

Há diferentes maneiras de verificar que o buraco da corrupção no Brasil é muito mais embaixo.

A perversa concentração de renda no País é uma delas.

Mas se pode também verifica-la a partir de estudos de caso. E, nesse sentido, a Globo é um paradigma.

A empresa sai maior de cada crise política.

Começou com dinheiro estrangeiro, na década de 60, contrariando a Constituição da época.

Foi incriminada por uma CPI, mas se livrou de penalidade às vésperas do AI 5, quando obteve licença definitiva para funcionar.

No movimento das diretas, a Globo demorou para desembarcar do tanque dos militares, mas, quando foi para a calçada, indicou o ministro das Comunicações do governo de Tancredo Neves, Antônio Carlos Magalhães.

Esse episódio está contado no livro “A História Secreta da Rede Globo”, de Daniel Herz.

Em outra obra pouco divulgada no Brasil, o documentário “Muito Além do Cidadão Kane”, o jornalista britânico Simon Hartog narra que ACM, como ministro, asfixiou o antigo proprietário da indústria de equipamentos de telecomunicações NEC e criou as oportunidades para a compra da empresa, a preço vil, por Roberto Marinho.

A família de ACM se tornou, na mesma época, fraqueada da Rede Globo na Bahia.

Na era Collor, a emissora promoveu o caçador de marajás, estrela de um Globo Repórter, e depois, também com atraso, desembarcou do Morcego Negro – como era chamado o avião de Collor/PC.

Nos dois anos e três meses de governo Itamar Franco, tocou a vida, até encontrar em Fernando Henrique Cardoso o seu grande amigo.

 

Os companheiros Roberto Marinho e FHC

Eram tão amigos que, em maio de 1997, Roberto Irineu Marinho, recebido num almoço no Palácio do Alvorada, se sentiu à vontade para aconselhar Fernando Henrique Cardoso a ter mais “autoridade”.

O próprio Fernando Henrique conta, em suas memórias, o que entendeu pelo conselho do dono da Globo.

“Entenda-se por isso maior repressão, sobretudo no que se refere ao MST”, escreveu ele em Diários da Presidência.

No almoço, Roberto Irineu Marinho deixou de presente para Fernando Henrique um livro que relatava como o presidente peruano, Alberto Fujimori, muito popular em seu país na época, havia endurecido.

Fujimori havia dissolvido o Congresso e fechado o Poder Judiciário e o Ministério Público, com a colaboração das Forças Armadas.

A família Marinho conseguiu no governo Collor um empréstimo ajuros camaradas da Caixa Econômica Federal, para fazer o Projac, e nadou de braçada nos anos de Fernando Henrique, com financiamentos do BNDES e participação direta e indireta nos leilões de concessão e privatização.

No governo do PT, pelo menos em seus primeiros anos, teve vida fácil, e Antonio Palocci , ministro da Fazenda, prestaria um grande serviço ao País se levasse adiante o que teria insinuado num conversa com procuradores em Curitiba.

Dois procuradores, numa sondagem para saber quem Palocci poderia implicar num eventual acordo de delação premiada, ouviram: “Roberto Irineu Marinho”.

Os jornalistas que cobrem a Lava Jato sabem dessa história e enviei uma pergunta ao advogado de Palocci, Roberto Batochio, para saber se era verdade.

Como resposta, obtive o silêncio.

Nos anos de Palocci no Ministério da Fazenda, a Receita Federal descobriu um caso de sonegação da Rede Globo, ocorrido na aquisição dos direitos de transmissão da Copa do Mundo em 2002.

A dívida só aumentou até 2009, quando uma Medida Provisória foi aprovada pelo Congresso Nacional, que concedeu desconto na multa e na correção monetária e permitiu o parcelamento da dívida.

Não só da Globo, mas de todas os devedores, inclusive da Odebrecht, que agora confessa ter pago propina pelo benefício.

A ação penal contra os três filhos de Roberto Marinho – Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto — , denunciados pela Receita Federal pelo crime contra a ordem tributária, não ocorreu, porque os autos que descrevem o delito desapareceram da Receita Federal.

Eu os encontrei numa casa do subúrbio do Rio de Janeiro, depois que passou pelas mãos de uma quadrilha que tinha o envolvimento de uma funcionária da Receita.

Sem confrontação, a Globo segue com a hegemonia da narração da “delação do fim do mundo” e pode contar a história como quiser.

No Fantástico deste domingo, por exemplo, a emissora colocou no ar o trecho em que Emílio Odebrecht fala que o pagamento de propina é uma sistema de mais de trinta anos.

Na sequência, Emílio disse que a imprensa tinha pleno conhecimento. Chamou de demagogia a denúncia feita agora pela imprensa. Esta parte, a Globo cortou.

Emílio Odebrecht disse demagogia, mas talvez outra palavra se encaixe melhor: hipocrisia.

No purgatório que vive, a corrupta Odebrecht é bode expiatório.

A empresa ficou na mesa e agora paga sozinha a conta da corrupção.

Os outros comensais saíram do restaurante e hoje contam para o público o que se passou, mas, claro, omitem o fato de que estavam lá.