Faturamento de hospitais com cloroquina receitada pelo médico Didier Raoult vira escândalo na França

Atualizado em 13 de maio de 2021 às 15:05
“Hospital de Marselha: faturas bastante caras”, aponta reportagem da emissora France 2

A prescrição da hidroxicloroquina para tratar Covid-19 rendeu em 2020 até 6 milhões de euros aos hospitais de Marselha, onde fica o instituto dirigido pelo professor Didier Raoult, aponta uma reportagem da TV France 2.

O preço de uma consulta: pelo menos 1.264 euros. Em alguns casos, um tratamento chega ao triplo, o equivalente a mais de 24 mil reais.

Segundo o médico e senador Bernard Jomier, as consultas no instituto de Dr. Raoult custaram 10 vezes mais do que os valores habituais.

Dois pacientes ouvidos pela TV francesa sob anonimato – o que é de praxe em relação a quem resolve denunciar as práticas no laboratório de Raoult – apontaram os componentes do “pacote” vendido pelo Institut Hospitalier Universitaire (IHU).

“Houve um exame de sangue, um eletrocardiograma e a consulta. Eu avisei que não tinha convênio e me disseram que não tinha problema, que eu teria apenas alguma coisinha a pagar”, disse um paciente que resolveu se consultar em outubro do ano passado.

Dos 1.264 euros cobrados, 80% foram pagos pela seguridade social, enquanto o paciente teve que desembolsar 252 euros. “Se eu soubesse que seria tão caro, eu não teria ido. Ainda mais porque eu era assintomatico”, disse.

Para um segundo paciente, que tampouco teve a idade revelada, mas parece um jovem adulto, a fatura do tratamento à base da hidroxicloroquina foi mais cara.

“Eu penso que cobram valores astronômicos. 3.800 euros por três consultas, três testes PCR e um exame de sangue não é possível”.

“A razão do preço: os exames não foram cobrados separadamente, mas dentro de um pacote de 1.264 euros, a chamada ‘hospitalização diária’, em parte paga pela seguridade social. Para saber se os preços são justos, os dois pacientes pediram acesso a seus ‘dossiês médicos’. Apenas um deles recebeu o documento”, relata a reportagem.

O documento foi mostrado a um ex-médico da seguridade social, única profissão apta a fiscalizar as faturas dos hospitais:

“Se houve realmente uma hospitalização diária, deveria haver um relatório de hospitalização, o que não há. Se esses exames justificam uma hospitalização de um dia? Para mim, não. Para esse tipo de consulta, a cobrança deveria ser no máximo de 200 ou 300 euros”, afirmou.

Com a ajuda de Christian Lehmann, o primeiro médico a revelar os preços exorbitantes praticados por Raoult e os hospitais de Marselha, a reportagem do canal France 2 calculou o número total de hospitalizações por inflamação respiratória em 2020: “Nos hospitais de Marselha, rede da qual depende o IHU, foram 24 mil, o que equivale a 58% de todas as hospitalizações de um dia por esse motivo na França no ano passado”.

“É uma anomalia estatística total. A única explicação possível que encontramos é que, na época, era praticamente impossível prescrever a hidroxicloroquina se o paciente não estivesse hospitalizado”, analisa Lehmann.

“Hospitalizações que, portanto, serviram para prescrever o medicamento emblemático defendido pelo professor Raoult”, afirma a reportagem.

A rede regional de hospitais de Marselha disse que perdoou a maioria das dívidas de pacientes sem convênio que fizeram uma reclamação. De todo modo, embolsou os valores pagos pelos demais.

À reportagem, Pierre Pinzelli, secretário geral da Assistência Pública de Hospitais de Marselha, sugeriu que não houve fiscalização: “O que nos guia é o melhor atendimento aos pacientes, não a melhor fatura para o hospital. Se a seguridade social quiser fiscalizar, ela irá nos fiscalizar”.

Segundo a reportagem, o hospital do professor Raoult garante que as faturas não custaram um centavo sequer a mais para a seguridade social. Esta, por sua vez, foi procurada por diversas vezes mas não respondeu às perguntas da emissora France 2.

No último domingo, o senador Bernard Jomier interpelou o ministério francês da Saúde.

“As faturas desses serviços (do IHU) deveriam ser de 8 a 10 vezes mais baratas. Observa-se que número de hospitalizações muito curtas (de 0 a uma noite) para ‘infecções inflamatórias respiratórias para pessoas com mais de 17 anos’ foi multiplicada de 2019 para 2020 por 14 na Ilha de França (Paris e região), 9,8 no Grande Leste (primeiro grande foco da epidemia de Covid-19 no país) enquanto em Marselha a multiplicação foi de 491, ou 40,8% das hospitalizações de duração muito curta para essas patologias em toda a França”, calcula.

“Esses altos custos para um estabelecimento público representa uma sobrecarga muito grande para a seguridade social, os organismos complementares e também para os pacientes sem convênio. Relatos apontam pessoas que não haviam sido avisadas do preço das consultas e em dificuldade para pagar as cobranças”, aponta.

“Essas informações concernem um IHU inclusive questionado quanto à sua governança depois de uma inspeção geral social e da administração da educação nacional, ambas em 2015. A política de publicações e os conflitos de interesse de certos dirigentes vêm reforçando essas indagações desde então.”

Quase uma semana depois de questionado, o Ministério da Saúde ainda não respondeu ao senador. Didier Raoult é processado na França por diferentes conselhos de medicina, que o acusam de charlatanismo.