Do acampamento ao que está por vir. Por Remy Fontana

Atualizado em 19 de abril de 2018 às 16:45

POR REMY FONTANA, professor aposentado do Depto. de Sociologia e Ciência Política da UFSC

O cachaceiro, o apedeuta, o ladrão-mor, o grande corrupto, o populista, o demagogo, o manipulador das massas ignorantes, o “nine”, na espantosa designação que lhe faz o “judge” Moro, está finalmente preso.

Preso para o delírio triunfal destes nobres defensores da pátria, depositários da transcendental pureza republicana, que lhe pespegaram os apelidos no seu ímpeto desenfreado de salvar a moralidade pública nomeando Lula como o suposto responsável pela sua degradação.

Podem agora estas justiceiras classes médias, atordoadas diante das complexidades do mundo real e das contradições sociais que só lhes aparecem pelo foco invertido e deformante do circo de horrores da corrupção, dormir tranquilas, em um novo e depurado país. Assim seja, amém!

Afinal, temos agora um Estado esfacelado, incapaz de processar seus requerimentos essenciais de acumulação e legitimação; um Regime Político decrépito que se desmancha célere a cada folha rasgada da Constituição, e um Governo cuja notória camarilha dispensa apresentações.

Não é isto o que queriam os senhores golpistas de todas as cores e latitudes, da aristocracia financeira à lúmpen burguesia, passando pelas camadas médias e parte do populacho que foi às ruas de verde-amarelo nestes últimos anos?

Como entender que um dos mais festejados presidentes do país está preso numa cela, enquanto certamente o pior está no Palácio do Planalto?

Como explicar que mesmo preso, este preso político continue a comandar índices indisputados de preferência eleitoral?

Como avaliar a extensão deste “desvario” de um povo que insiste em sufragar seu nome em próximas eleições?

Eis que surgem os acampados (hoje dezenas em quatro barracas perto da Polícia Federal e os demais num terreno privado a 800 metros dali), mantendo-se em vigília cívica, em disposição militante, em atitudes de ousada resistência, enfrentando violência de provocadores, em aberto desafio e inconformismo aos atos e procedimentos que confinaram seu líder.

Mas afinal, do que é expressão este acampamento no bairro Santa Cândida, na República de Curitiba?

Seria este acampamento uma reunião de alguns aguerridos militantes, de apoiadores cegos de um líder político decaído, de desavisados de toda ordem, ou de féis discípulos d´Ele, como escreveu o DCM em “Viemos te buscar”?

O repórter subestimou o potencial simbólico e o ponto de inflexão que representa o acampamento nesta longa e disruptiva conjuntura?

O que está dito pela algaravia semântica de seus traços no asfalto, nas precárias armações de suas barracas, na estridência dos vozerios que anunciam apoios, nos gestos que demonstram solidariedade e nas proclamações políticas de luta e resistência, inconfundíveis manifestações, ali concentradas no espaço de poucos metros quadrados, de uma energia que extravasa estes limites e que é de milhões; de milhões que não abdicam de sua soberania enquanto povo, não se conformam de vê-la sequestrada pelos artifícios espúrios de moralistas de ocasião a serviço de interesses anti-povo, anti-nação, anti-democracia.

Em tempos de cólera induzida, de ódios alimentados, de manipulações grotescas, porém eficazes a tensionar os laços da tessitura democrática de uma nação, quase ao ponto de ruptura, elites do atraso, com seu séquito de alienados políticos em todas as classes, flertam com simulacros do fascismo para fazer frente aos impasses de sua própria dominação, às crises de seu próprio sistema que lhes inviabilizam pretendidas hegemonias.

Temos aí configurada as premissas de uma guerra civil. Sim, uma guerra desde sempre contra o povo, escamoteada com os subterfúgios da linguagem, da ideologia, das promessas do consumismo, da indústria do entretenimento e de outros tantos expedientes e por outros tantos aparatos de dominação, incluído por óbvio a repressão nua e crua, quando necessário.

Uma guerra civil por outros meios, internamente, e uma guerra híbrida, como hoje se designa, uma guerra por meios não-convencionais, uma guerra promovida pelos estertores da hegemonia imperial americana, que tem no “Brazil” do “Car-wash”, no Brasil da Lava-jato, uma de suas expressões mais acabadas, mais virulentas.

Para operar a agenda deste esbulho imperial via agentes internos (a elite judicial-policial-midiática patropi), era necessário um eixo articulador, classicamente demonizando alguma figura (Lula), uma organização (PT, MST, …), uma ala do espectro político (a esquerda), responsabilizando-as por todas as desgraças nacionais (aqui reduzidas à vala comum das práticas de corrupção).

A prisão de Lula é a consagração desta estratégia.

A resistência a esta prisão é sua denúncia.

Os termos deste embate estão dados: diminuem os meios políticos de resolução de confrontos, aumentam os riscos do conflito aberto. Dispõem-se as forças em presença, de um lado as forças usurpadoras da soberania popular, do outro a insurgência potencial de um povo que está a dizer “basta”, e este basta hoje se condensa no clamor irrefreável de “Lula Livre”.

Lula Livre é o brado a despertar as consciências dos indivíduos e das massas, como base para uma política de resistência ao golpe parlamentar-judicial-midiático, e o fundamento de uma ação política transformadora, progressista.

Lula Livre transcende a pessoa, o político, o líder.

Lula Livre pode ser uma ideia que não se prende, como enunciou o próprio personagem, e pode mais, quando penetra na consciência de multidões, tornar-se então uma força material-política, habilitada a forjar seus próprios caminhos.

Lula Livre é hoje a democracia a ser resgatada, a soberania reafirmada, o futuro aberto à esperança.