É questão de tempo e dinheiro até os blocos serem transferidos para o Sambódromo. Por Mauro Donato

Atualizado em 11 de fevereiro de 2016 às 17:18

 

O bloco Sargento Pimenta
O bloco Sargento Pimenta

Quem costuma acompanhar o carnaval pela televisão pode estar estranhando a quantidade de tempo que a grade de jornalismo tem dedicado aos blocos de rua.

Com uma cobertura ‘tranquila e favorável’, informa que estão repletos, transbordando animação e que são o grande sucesso do momento.

E de onde saíram tantos blocos e tantos foliões?

Isso não ocorre de uma hora para outra. Falando especificamente de São Paulo, quem conhece e acompanha os blocos sabe que há pelo menos uma década esse movimento vem num crescendo e chegou a isso que estamos vendo. Arrasta multidões todos os dias há tempos. Mas atingiu uma dimensão que tornou impossível escondê-los.

A emissora que detém a exclusividade de exibir o carnaval das escolas de samba já fez algo semelhante durante a campanha das Diretas Já. Escondeu pelo máximo de tempo possível, mas quando um milhão de pessoas estavam em praça pública foi lá e ligou câmeras e microfones (em suas retrospectivas atuais ela informa que ‘esteve atuante na cobertura’).

Mas carnaval não é regime político, os blocos de rua estavam boicotados por quê?

Simples. Não interessavam financeiramente à grande emissora detentora de exclusividade na transmissão dos carnavais de SP e Rio de Janeiro. Transmissão que possibilita a venda de cotas de patrocínio milionárias e exclusividade que favorecem o empoderamento. Carnaval de rua é uma manifestação livre, um concorrente indesejável para quem tem espírito dominador e visualiza cifrões.

Não se iluda, portanto. Se a Globo hoje está divulgando os blocos, não se deve a nenhum puritanismo do departamento de jornalismo. Ela está é crescendo os olhos em cima de algo de enorme potencial de comercialização.

Algo que, aliás, já vem acontecendo fora dos holofotes. Uma batalha entre marcas de cervejas está sendo travada nas ruas. Existe uma ‘patrocinadora oficial’ da festa enquanto outras marcas anunciam ser patrocinadoras de determinados blocos. E todas querem exclusividade nas vendas. Pergunta: se é carnaval de rua, como exigir exclusividade?

Em São Paulo isso já provoca contratempos (a prefeitura chegou a realizar apreensões no último sábado), mas em Salvador o clima ficou mais quente do que o habitual com os ambulantes revoltados e enfrentando a polícia. Lá só se pode vender – e consequentemente beber – uma única marca de cerveja imposta por ACM Neto, o Netinho Malvadeza.

Se não bastasse, a prefeitura soteropolitana recolheu até mesmo dos supermercados próximos ao circuito todas as cervejas de outras marcas (sim, eu sei, isso a emissora não explicou, mostrou apenas o ‘protesto’ dos ambulantes. Ela não deseja que o espectador saiba o porquê pois tem sua parcela de responsabilidade e interesse naquilo).

É disso, portanto, que se trata. Money, bufunfa, capilé. Segundo dados da SP-Turis, em São Paulo os blocos de rua já movimentam R$ 400 milhões, ao passo que o desfile das escolas no sambódromo do Anhembi gira R$ 250 milhões atualmente. Pouco mais que a metade. O carnaval das escolas já não é mais tão lucrativo, a audiência está em franco declínio tanto na TV como in loco (observei muitos vazios nas arquibancadas). Prova é que a emissora estuda diminuir o tempo de exibição dos desfiles em 2017.

As escolas tão chiando mas é um caminho sem volta, a audiência despencou. Claro, está chato, tudo igual, há décadas. Entra escola, sai escola, entra ano, sai ano, tudo sempre igual. Ninguém aguentava mais, o povo foi pras ruas brincar o carnaval verdadeiro. No carnaval ‘oficial’ paga-se para entrar, paga-se para assistir, paga-se para participar e paga-se um imenso mico por estar sob ordens o tempo todo.

Então a TV está ‘analisando as oportunidades’. Através do jornalismo ela fomenta o interesse para algo que irá explorar comercialmente amanhã.

“Bobagem, impossível, não tem como cercear, os blocos de rua existem há séculos, não tem como controlar…”

Mais uma vez, olhemos para Salvador. Lá não há escolas de samba, mas os trios elétricos se tornaram o equivalente a elas. Nasceram como algo livre, da rua, e hoje são o que são, uma indústria. É preciso pagar o abadá para seguir o trio que será capitaneado por uma celebridade protegida desde os tempos de ACM avô. Têm cordões excludentes, seguranças, contratos de exclusividades que vão de marcas de cerveja a emissora de TV. Daí a falta de liberdade que resulta nos protestos dos ambulantes que estamos vendo.

O carnaval de rua de São Paulo começa a aparecer na TV como fenômeno novo, mas na verdade está num estágio muito próximo de submeter-se às garras do capitalismo e das indústrias que querem sempre dar um jeito de tomar conta da situação, impor suas regras e lucrar muito.

Para não perder o costume, voltemos à Bahia. Às vésperas da Copa do Mundo de 2014, quiseram impedir as baianas de vender o acarajé na porta e nas imediações do estádio da Fonte Nova. Como não eram vendedoras de nenhum produto industrializado nem passíveis de ser cooptadas, eram um problema para a imperialista indústria FIFA. Nenhuma ambev da vida fazia os quitutes para substituí-las, nenhum concorrente subornável para expulsá-las. Ao mesmo tempo, foi a sorte. Diante de muitos protestos com relação ao descalabro da medida, foi concedida a ‘permissão especial’.

Convém também analisar o equilíbrio da cobertura jornalística entre o sucesso dos blocos e os problemas que têm causado. Moradores dos arredores reclamando muito, querendo restrições no número de pessoas, limitação de horário, etc. Cenas de bebedeiras, consumo de drogas, gente urinando na rua, furtos de celular. Daí tome polícia com bombas, cassetetes e gás de pimenta. Sim, já está ocorrendo com frequência preocupante.

Com sua cobertura ‘um olho no peixe e outro no gato’, a TV valoriza o sucesso de público de olho no lucro mas realça os problemas de se deixar a coisa ‘solta’. Daí ela entra para botar ordem no barraco.

Não se surpreenda portanto, leitor, se em breve alguém vier com a seguinte e brilhante ideia: “Tá muita bagunça. Que tal colocar os blocos dentro de uma passarela, num único local, fechado, com os desfiles em sequência pre-determinada, tudo organizado?”

Uma grande parte da população que detesta essa gente indigesta irá aplaudir. Assim será possível cobrar ingressos, vender patrocínios, criar primeira e segunda divisão para transformar em campeonato (mais um desdobramento que favorece rolar uma graninha ilícita), obter exclusividade da transmissão, fazer bajulação com autoridades ao ceder camarotes…