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O orgulho do cabelo crespo é uma resistência ao racismo

 

A primeira vez que me detive na expressão do momento foi quando uma pequena do meu afeto me contou animada que uma coleguinha de escola, de 13 anos, como ela, havia assumido os crespos. Eu retruquei na hora: Ué, o crespo saiu do armário? E rimos a vera. Ela continuou o papo e confessou o desejo de assumir também. Incentivei. Veio então o golpe de misericórdia: Você podia assumir junto comigo. Mas como? Perguntei perplexa. Eu já uso dreads. Em agravo ao meu estado, a menina concluiu: Isso não é crespo. E o que seria um crespo, perguntei? Ah, um Black ou um cacheado bem fashion!

As pequenas, as mais novas, nos trazem para o mundo real, às vezes bem distante da vivência das mais velhas. No meu tempo político dreads significavam a radicalidade do cabelo crespo, principalmente para as mulheres negras. Hoje, para muitas meninas influenciadas pelas jovens que tomam a web com seus blacks e encaracolados poderosos, dreads podem significar qualquer coisa, menos uma radicalidade desejada para os cabelos crespos, pelo menos em mulheres.

Considerando o inusitado, podemos nos perguntar se haverá oposição entre a Marcha das Mulheres Negras Contra a Violência, o Racismo e Pelo Bem-viver e suas pré-marchas, disseminadas pelo país, e as Marchas do Orgulho Crespo e sua vocação de crescimento articulada por linguagem ágil, dinâmica, conectada ao culto à imagem do selfie, astro rei das telas de todos os tamanhos?

Penso que não. Não haverá oposição, se o sentido amplo da expressão marcha for o fiel da balança. Marcha é uma palavra usada nos contextos de guerra, de combate, de luta. São memoráveis as machas pelos direitos civis nos EUA dos anos 1960; as marchas pelo fim do Apartheid que tiveram vez  na África do Sul e em todo o mundo, nos anos 1980; a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, Pela Cidadania e Pela Vida, no Brasil, em 1995. Da raiz da Marcha do Orgulho Crespo, pautada aparentemente pela elegia à estética, e também da Marcha das Mulheres Negras, suposto ápice da politização, emerge o mesmo princípio, a opressão interseccional enfrentada pelas mulheres negras de África e da diáspora.

A diáspora rica e com direitos civis consolidados nos EUA não impediu a morte de Sandra Blend pela polícia do Texas, perseguida por infração de trânsito. Não evitou também que fizessem montagem com seu corpo, já sem vida, para simular registro de entrada na cadeia. E que três dias depois declarassem sua morte por suicídio.

Na diáspora empobrecida de Madureira, policiais arrastaram Cláudia da Silva Ferreira por 350 metros, até que passantes horrorizados denunciassem a existência de um corpo dependurado na viatura.

Em toda a diáspora, as famílias negras são devastadas por gerações, quando um membro é assassinado pelo Estado. Além da ausência do ente querido persiste uma mensagem de intimidação explícita aos que sobrevivem, mais ainda aos que ousam lutar por direitos. O racismo e a branquitude tratam ainda de eliminar, desde sempre, todos os sinais de vinculação positiva de pessoas negras ao continente africano, enfraquecendo-as na essência.

Ao contrário do que se apregoa em debates tendenciosos e alheios ao funcionamento do racismo para as pessoas por ele alvejadas, não há nada de vitimismo em atividades como Cabelaços, Encrespando, Marchas do Orgulho Crespo. Existe, sim, protagonismo de uma estética ligada ao pop negro contemporâneo. Estética que, na arte, é a parte mais visível da ética do artista.

Coisa boa que essa juventude negra ocupe a Paulista e outras grandes avenidas em manifestações de rebeldia, já que, no dia a dia, não circulam por ali com liberdade e arriscam a vida se o fazem e precisam correr para pegar um ônibus, afinal, é possível que esse gesto simples ative no policial da viatura que sempre os espreita a chave da condição de suspeitos preferenciais, que os acompanha desde a gestação.

Coisa boa também que as mais velhas, por meio de sua vivência alargada, capacidade de reflexão apurada e generosidade, sistematizem para todos nós o essencial: descendemos de quilombolas e temos sido as responsáveis pela sobrevivência física, econômica, emocional, psíquica e espiritual do povo negro ao longo da diáspora africana. Somos o presente, o futuro, e exigimos o bem-viver agora, lideradas por distintas gerações de nós mesmas.

Loas a todos os renascimentos possíveis. Crespos, dreads e turbantes são as coroas contemporâneas que simbolizam a realeza usurpada de nossas ancestrais e latente em quem sobreviveu.

Cidinha Silva

Cidinha da Silva, mineira de Belo Horizonte, é escritora. Autora de "Racismo no Brasil e afetos correlatos" (2013) e "Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil" (2014), entre outros.

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