Quem escreveu e por quê: anatomia do editorial macartista do Estadão contra Greenwald. Por Kiko Nogueira

Atualizado em 26 de maio de 2020 às 11:04
Pereira, autor do texto contra Greenwald, chefe dos editorialistas do Estadão
Pereira, autor do texto contra Greenwald, chefe dos editorialistas do Estadão

Com reportagem de Pedro Zambarda.

 

O editorial do Estadão pedindo uma “atitude mais resoluta” do governo interino contra “os advogados da causa petista” já entrou em qualquer antologia da crônica do golpe de 2016 pelos piores motivos.

“O jogo sujo da informação” é uma diatribe sobre “a campanha de difusão de falsidades cujo objetivo é denunciar a ‘ilegitimidade’ do presidente em exercício Michel Temer.”

O jornalista americano Glenn Greenwald, radicado no Rio, é atacado como “ativista”. Greenwald, ganhador do Pulitzer, ainda apanha por uma frase que não escreveu, pinçada do blog O Antagonista.

A peça submacartista, que sugere que o Itamaraty busque a expulsão de Greenwald, está no clássico espaço dos editoriais, instituição da imprensa nacional.

Eles não têm assinatura. É a “opinião do jornal”. Parece inacreditável, mas no caso do artigo em questão e outros, eles são perpetrados por seres humanos e não por um entidade da Marginal Tietê que os faz materializar-se a partir de água, ar, calor, lei e ordem.

Quem escreveu “O jogo sujo da informação”?

O repórter Pedro Zambarda fez essa pergunta ao time de editorialistas. Eles ficam numa ala separada da redação, em cubículos com mesa e telefone. “A sala deles lembra uma cabine de pornô do centro da cidade”, diz um funcionário.

São nove homens chefiados pelo editor Antonio Carlos Pereira. Todos seniores: Nicolau Cavalcanti, Marco Antonio Rocha, José Nêumanne Pinto, Lourenço Dantas Motta, José Eduardo Faria, Antonio Ferreira Paim, Jorge Okubaro, Marco Zuckerman, além do professor de filosofia da USP Rolf Kuntz.

Pereira responde diretamente para Fernão Lara Mesquita, filho de Ruy, morto em 2013. Fernão é conhecido por ter desfilado num protesto ostentando orgulhoso um cartaz escrito “Foda-se a Venezuela”.

O relato de Zambarda:

Nêumanne afirmou que o texto não é dele. “Infelizmente não posso comentar editoriais do jornal porque não seria ético da minha parte”, declarou.

Cavalcanti também negou a criança. Marco Antonio Rocha repetiu Nicolau e emendou num tom de voz mais grosso ao telefone: “Óbvio que eu concordo com esse editorial! Eu sou um dos editorialistas!”.

Jorge Okubaro e Rolf Kuntz recomendaram entrar em contato com Antonio Carlos Pereira: “Ele é o responsável pela seção e é ele que pode responder”.

O filho enjeitado foi assumido, enfim, por Pereira, que teve um chilique. “Em meus mais de 50 anos de carreira, nunca fui questionado desta forma! Se você fosse um advogado do Glenn Greenwald, eu entenderia esta ligação. Mas para escrever uma reportagem sobre o meu texto? O texto do jornal é o que ele é”, vociferou.

Perguntei-lhe o que ele quis dizer ao chamar Greenwald de ativista. “Olhe no dicionário!”, gritou. E mandou passar bem.

Pereira está há 33 anos na empresa. Dono de uma barba grisalha que contrasta estranhamente com o cabelo negro como a asa da graúna, low profile, ele é um dos fundadores do Instituto Millenium.

Num certo “Curso de Focas”, contou aos jovens que “ter política definida está no DNA da publicação” e que ela “nasceu para apoiar a República e lutar pelo fim da escravidão”.

Pereira fica chocado quando questionado sobre as barbaridades de sua lavra, mas é compreensível por que Pereira não é Pereira. Embora estejam todos de acordo no direitismo jeca da tradicional família paulista (chame de liberais conservadores), ele e seus chefiados são uma mesma pessoa, o dono Fernão Mesquita.

Adversários devem ser chamados de “matilha” e “tigrada”, como faziam os nazistas? Pois não. Ciclistas andam nas calçadas e merecem a prisão? Combinado. E por aí vai.

Não é para questionar nada, mesmo. Não concorda? Fodam-se a Venezuela, a ética, a democracia, a liberdade de expressão e a capacidade de pensar por conta própria.