O que o julgamento do Mensalão fala sobre o poder judiciário brasileiro

Atualizado em 24 de outubro de 2012 às 16:20

Se a nata dos juízes está alojada no Supremo Tribunal Federal, que dirá o resto?

Mello

O julgamento do Mensalão deixou claro que temos problemas sérios no sistema judiciário brasileiro. Que tínhamos e temos problemas no sistema político era e é evidente: basta ver as alianças que os dois maiores partidos nacionais são obrigados a fazer em escala municipal, estadual e federal. Maluf, em São Paulo, foi disputado.

O fato novo, ou relativamente novo, é o escancaramento da precariedade do sistema jurídico. O julgamento do Mensalão trouxe para os holofotes este drama nacional.

Vejamos Marco Aurélio Mello, do STF. Ontem, na votação em que condenou os réus, ele repetiu um discurso que fizera em 2006 – saudado como “magnífico” por um comentarista político.

Um trecho dele:

Infelizmente, vivenciamos tempos muito estranhos, em que se tornou lugar-comum falar dos descalabros que, envolvendo a vida pública, infiltraram na população brasileira ─ composta, na maior parte, de gente ordeira e honesta ─ um misto de revolta, desprezo e até mesmo repugnância. São tantas e tão deslavadas as mentiras, tão grosseiras as justificativas, tão grande a falta de escrúpulos que já não se pode cogitar somente de uma crise de valores, senão de um fosso moral e ético que parece dividir o País em dois segmentos estanques ─ o da corrupção, seduzido pelo projeto de alcançar o poder de uma forma ilimitada e duradoura, e o da grande massa comandada que, apesar do mau exemplo, esforça-se para sobreviver e progredir.

Que país é este? O Brasil? Onde se manifesta, nas urnas, o instrumento mais importante para aferir o sentimento de um povo, o “misto de revolta, desprezo e repugnância”?

Quando aquilo acontece, qualquer governo numa democracia é varrido. Desde o “magnífico” discurso, Lula foi reeleito, saiu do governo com 80% de aprovação e colocou Dilma no poder.

Apenas para constar: não votei em Lula nem na eleição e nem na reeleição. Mas cego não sou.

Agora mesmo, em meio ao julgamento, Haddad está prestes a se eleger prefeito de São Paulo contra o superpreparado, aspas, Serra graças a Lula.

Mello parece estar desconectado da voz rouca das ruas no Brasil. É como se ele estivesse acompanhando o país, à distância, pelos artigos de Jabor e de Merval e pelos editoriais do Estadão, com incursões online pelo Blog do Noblat.

Disse ele no “magnífico” discurso:

Não passa dia sem depararmos com manchete de escândalos. 

O que isso significa quando você tem uma imprensa que se especializou em veicular uma profusão de escândalos, muitos deles tão sem sentido que acabam abandonados no meio do caminho? Um sistema judiciário melhor poria limites na indústria de escândalos – até para que a sociedade possa distinguir as coisas e formar suas próprias opiniões.

No Brasil, você pode publicar, como aconteceu, que Lula tem uma conta no exterior com base num dossiê que não podia ser “nem confirmado e nem desmentido”, conforme quem trouxe este escândalo, aspas, a seus leitores, a Veja. Nos Estados Unidos, Paulo Francis foi instado pela justiça local a provar que diretores da Petrobras tinham contas no exterior. Francis foi processado nos Estados Unidos porque fez a acusação em solo americano, no programa Manhattan Conection.

Para encurtar a história, ele ficou atormentado a tal ponto pela indenização que teria que pagar caso não provasse as acusações que morreu do coração.

A liberdade de expressão é um bem precioso demais para ser tratado à Paulo Francis – para caluniar adversários e inimigos sem prova. A justiça brasileira, em sua leniência, estimula este tipo de jornalismo.

Um último ponto que eu queria destacar da fala de Mello em 2006 e repetida ontem:

A rotina de desfaçatez e indignidade parece não ter limites, levando os já conformados cidadãos brasileiros a uma apatia cada vez mais surpreendente.

Pois aí eu queria entender melhor. Num parágrafo, a revolta dos brasileiros parece ser semelhante à dos franceses ao tomar a Bastilha. Ou, para sermos mais atuais, às dos egípcios que derrubaram Mubarak. Em outro, a apatia dos revoltados é surpreendente.

Não existe, simplesmente, nexo. Pela lógica que se autodestrói em um texto curto pode-se avaliar a estatura intelectual de um de nossos mais importantes juízes togados.

O Poder Judiciário tem que ser reformado — até no campo dos modos e costumes. Tudo bem o ministro Gilmar comparecer ao lançamento de um livro em meio ao julgamento? Claro. Em tese. Mas e se este livro é de alguém cujos textos sobre exatamente este assunto são desequilibrados, envenenados e antijornalísticos, como é o caso de Reinaldo  Azevedo?

Aí fica muito mais complicado. No mínimo, é uma antecipação de voto. Mostra, para além disso, uma intimidade desaconselhável entre um juiz tão importante e a mídia.

Esse tipo de relação sabemos onde dá: o jornalista eventualmente ganha acesso a informações confidenciais, e a fonte ganha a certeza de que receberá tratamento vip do jornalista.

Não é bom para a democracia. Na Inglaterra, um comitê está discutindo neste momento os limites da mídia – e um dos tópicos é exatamente a relação entre jornalistas e o poder. Amizade não pode porque é nociva para o interesse público. O premiê David Cameron teve que explicar no comitê, com transmissão ao vivo para todo o país, a natureza dos emails trocados com uma jornalista que ocupava um cargo elevado no grupo News International, de Rupert Murdoch.

O grande Pulitzer, o editor que simplesmente inventou as manchetes, disse uma frase que sempre repeti para as equipes que chefiei: “Jornalista não tem amigo”.

Um jornalista amigo de Lula não consegue escrever sobre ele com distância. Um jornalista amigo de FHC, idem. Daí por diante.

Jornalista não tem amigo é uma frase que deveria estar gravada na mente de todo jornalista.

Mas a mídia tradicional brasileira jamais levou isso a sério.