Na terra do Homem Sincero: a VIP na minha vida

Atualizado em 11 de fevereiro de 2022 às 18:55
A cara da VIP se expressou nesta foto de Ana Paula, por Bia Parreiras

“A empresa quer que a gente dê uma avaliada na VIP antes de tomar uma decisão”, me disse meu chefe JR Guzzo numa dada manhã em meados dos anos 90. A VIP não estava sob nossa jurisdição, no chamado Grupo Exame. A revista surgira de uma boa idéia, oferecer leitura de entretenimento para os executivos, mas tropeçara na má execução. Levava uma vida na penumbra e no vermelho, depois de alguns anos do lançamento,  a Abril queria saber se seguia adiante com ela ou não.

Fui almoçar, naquele dia, no Galeto’s do Shopping Eldorado, um dos meus destinos habituais então pela proximidade e, não menos, por uma banca de revistas da Laselva que havia lá. Livrarias e bancas me fascinaram desde cedo. Não sou ermitão, mas gosto de comer sozinho, com um livro ou uma revista como companhia.

Passei pela Laselva antes de almoçar. Minhas leituras de revista, então, se concentravam nas chamadas Big Three do jornalismo de negócios americano, Fortune, Forbes e Business Week. Eu tinha que ver o que estava acontecendo no mundo das revistas masculinas, já que a VIP passaria, pelos menos por um tempo, a fazer parte da minha rotina.

Olhei para uma parede forrada de revistas masculinas estrangeiras na Laselva. A Playboy americana estava decrépita. Não interessava. Títulos clássicos dos Estados Unidos, como a Esquire, mais ainda. Mas ali no meio das revistas vi uma cuja capa me chamou a atenção. Eu nunca ouvira falar nela. A foto da capa era divertida, uma mulher bonita e alegre cercada de chamadas espirituosas de variados assuntos do repertório do homem pós-feminismo. De carreira a futebol, de relacionamento a fitness, de cultura pop a viagens, tudo estava ali. Com muita graça. Ali estava uma revista que ensinava o homem moderno divertindo-o.

Peguei nas mãos, folheei, comprei e levei comigo para o restaurante.

Eu carregava, sem saber, um fenômeno – o último no mundo das revistas antes da chegada da Era Digital. O fenômeno eram as novas revistas masculinas inglesas, feitas por lads para lads – jovens urbanos e imensamente ligados nas coisas. Num ambiente de revistas masculinas maçantes e embolaradas, as inglesas captaram o espírito do tempo, o zeitgeist, e se tornaram grandes amigas de homens que queriam entender como lidar com a nova mulher.

Eu me divertia fazendo chamadas de capa como estas da edição com Tiazinha

Eu estava com uma Maxim, que depois se tornaria minha revista  preferida, pertencente a um empreendedor inglês extravagante e notável, Felix Dennis, dono da Dennis Publishing. Dennis usava uma barba à Marx e fazia poesias. Quebrara no passado e passara pela prisão antes de ressurgir triunfal com a Maxim e outros títulos, como a The Week. Visionário, colocara em seu testamento o compromisso de que seu dinheiro fosse usado para a feitura de uma enorme floresta na sua Inglaterra.

A Maxim disputava o mercado inglês – e depois essa luta se transferiria para os Estados Unidos – com a FHM, com uma receita parecida.

Ao ler a Maxim no Galeto’s devo ter parecido louco para os vizinhos de mesa. Nunca eu rira tanto com uma revista. As pautas eram inventivas, as legendas fugiam do convencional, as fotos e as ilustrações surpreendiam. Resultado: eu não queria que a revista acabasse. Fiquei altamente satisfeito duas vezes ao terminar de ler a Maxim: como leitor e como editor.  Não havia nada parecido com aquilo no mercado brasileiro, para azar dos leitores masculinos. A VIP tinha claramente um caminho. Quando voltei do almoço, disse a Guzzo que encontrara a solução para o problema da VIP. Dei a ele a Maxim para ler. Guzzo logo concordou.

Na edição seguinte, a VIP já estava de cara nova. Mulher na capa, chamadas divertidas, pautas arrojadas. As vendas responderam imediatamente. O homem brasileiro tinha, fundamentalmente, as mesmas ambições, os mesmos impasses e as mesmas angústias do homem inglês. E passava a ter também uma revista masculina à altura das que estavam na cabeceira do homem inglês. A VIP se beneficiou de uma leva de mulheres bonitas: Tiazinha, Feiticeira, Sheila Carvalho e Scheila Melo, para ficar em alguns casos.

Fotos sugestivas viraram a marca da revista, como esta de Juliana Paes

Foi, durante pelo menos dois anos, uma experiência eletrizante para a equipe que se formou na VIP. Era um privilégio receber salário para trabalhar numa coisa tão gostosa. Minha principal atividade era a Exame, que me demandava um bocado. Mas a VIP para mim era como o recreio: ainda que durasse apenas 20 minutos, ali estava uma festa concentrada.

O time pegara o espírito da coisa rapidamente. O diretor de redação, Marco Rezende, experiente de passagens internacionais a serviço da Veja, cuidava que as coisas não escapassem do controle – um risco em publicações de caráter libertário como era a VIP. O papel de Marco, a rigor, deveria ser o meu, mas jamais consegui ou quis dizer não a uma idéia ousada que me parecesse boa na VIP. Eu entendia que, para funcionar, a redação deveria se sentir absolutamente livre, como se estivesse na Maxim ou na FHM. Isso acabaria gerando um desgaste com a empresa, e levaria a VIP a sair de minha alçada mais para a frente.

Minhas repreensões eram de outra natureza.  Proibi mulheres de escrever sobre carros, por exemplo, depois que vi quais eram as prioridades automobilísticas femininas num carro testado pela editora Alexandra Forbes. Alexandra foi e voltou do Rio para testar o carro, e o seu relato depois estava associado muito mais às delícias – sobretudo gastronômicas – de uma viagem num carrão zero do que nos atributos desse carrão zero. “Mulher nunca mais testa carro”, disse para a equipe ao ler o texto.

Marco agiu como um samurai na demissão

A maior estrela daqueles dias, na redação, foi Mariella Lazaretti, na casa dos 30 anos, uma italiana explosiva  e imensamente criativa que incorporava a mulher que os leitores da VIP queriam decifrar e conquistar. Mariella fez matérias memoráveis. Numa delas, relatou sua experiência ao ter um dia de homem e fazer coisas masculinas – como trocar um pneu. Eu logo me apaixonaria por Mariella – e não só pela repórter.

José Ruy Gandra foi outra peça importante, um talento que infelizmente não foi dar onde poderia e deveria por causa de um temperamento incorrigível e uma preguiça invencível. Zé Ruy fazia a seção inicial da revista, uma salada de notas chamada O Espírito das Coisas. Pouco adiante, a seção passou a ser feita brilhantemente por um jovem jornalista que deixaria uma grande marca na revista, Edson Aran, hoje diretor da Playboy. Raras vezes em minha carreira uma seção de notas curtas tão bem feita quanto aquela de Aran.

Mariella, na foto com o marido George, foi a alma da VIP

Mulheres interessantes embelezaram a redação e contribuíram enormemente para o conteúdo da VIP em seu melhor momento. Alexandra Forbes cuidava do estilo de vida, Marília Campos Melo da moda, Kika Salvi do sexo. Fernanda Martinelli dirigia a arte. Mais tarde Ailin Aleixo, aos 22 anos, encantaria os leitores com uma coluna chamada A Muher Honesta. Ailin foi, na minha opinião, a melhor colunista da história das revistas femininas brasileiras: mordaz, maliciosa, surpreendente. Dagomir Marquezi saiu de um longo retiro do jornalismo para se incorporar à VIP e dar a ela uma avançada visão de vida digital. Carlos Amoedo inventaria a cobertura de fitness no jornalismo brasileiro pelas páginas da VIP.

A paixão da equipe se traduziria em épicas reuniões de pauta. Numa delas, Fernanda Martinelli, com seu ar terno de professora primária, reclamou que faltavam “textos de leitura”. Minha resposta imediata, depois comentada por muito tempo, foi que quem queria “textos de leitura” lia Proust, não a VIP. Em compensação na VIP o leitor encontrava mulheres lindas que mostravam tudo sem mostrar nada. A melhor capa trouxe a jogadora de vôlei Ana Paula vestida apenas com uma bola, um trabalho magistral da fotógrafa Bia Parreiras.

Certas coisas em minha carreira eu só vi acontecerem na VIP. Uma vez, uma produtora foi me mostrar as fotos de um ensaio com uma atriz da novela das 8 da Globo. De repente ela, pedindo uma discrição que a ela mesma faltava, pega uma foto em que aparecia beijando na boca a atriz. Houvera vinho na sessão de fotos e o fotógrafo, animado, sugeriu às duas belas mulheres que se beijassem, o que elas fizeram com ardor.

A VIP, para mim, foi também o lugar onde compensei, pelo menos parcialmente, a frustração de não ter sido escritor. Escrevi durante anos ali como um “escritor barato”, Fabio Hernandez, um homem que buscava inspiração e respostas em seu Tio Fabio, “um homem sábio do interior”.

Fabio Hernandez nasceu da necessidade de termos um colunista que personalizasse os dilemas masculinos. A idéia inicial era que Mariella, Zé Ruy e eu nos revezássemos. Seria mais apropriado, dado o rodízio, termos um nome de guerra que utilizaríamos os três. Fabio Hernandez foi uma sugestão de Mariella, um nome dramático de novela mexicana. Um dia lembramos a criação de FH. “Eu dei o nome, mas você deu a alma”, me disse Mariella. Certo ou errado, ao pegar a coluna jamais a larguei. Como acontecera quando comecei a editar a VIP, era incrível que eu recebesse dinheiro para fazer uma coisa tão gostosa. Mariella acabou sendo a musa de meus melhores textos da época, sob o codinome de Nadja.

Uma inovação sobre as revistas inglesas eram as colunas pessoais reunidas no final da revista, na seção “Atitude”.  Num determinado momento, eram sete, algumas das quais escritas por mim sob diferentes pseudônimos. Como editor, gosto muito de colunas. De vez em quando ouvi debates sobre colunas. Para mim, é perda de tempo. Como tudo no jornalismo, colunas são boas quando são boas e ruins quando são ruins. Isto posto, eu particularmente acho que elas enriquecem consideravelmente o conteúdo de uma revista. Gente que você não poderia ter na redação pode ganhar voz em sua revista numa coluna. O maior disparate que ouvi sobre colunas veio de Juan Ocerin, na Globo, que as classificava, sei lá influenciado por quem, como “sequestro de página”.

Alexandra Forbes cuidava, e como, do estilo da revista

A VIP encantou a Abril, mas também a incomodou. Algumas matérias causaram espécie. Uma delas trazia um ensaio de moda ambientado num assalto. Eu achei excelente, original, provocativo. (E útil: as roupas dos bandidos e das vítimas tinham sido bem escolhidas.) Mas minha opinião não foi dominante. Uma outra matéria controversa dizia ao leitor como organizar uma suruba. O clima grupal já aparecia na assinatura  – nela se aglomerava praticamente toda a equipe da revista, numa suruba de nomes.

A admiração inicial se transformaria em descontentamento na casa.

Não chegou a ser surpresa, no começo da década de 2000, a saída da VIP de minha esfera, numa reformulação das áreas em que ficavam os títulos na Abril. A VIP passou a responder a Luis Felipe Dávila, fundador da Bravo e genro (e mimetizador) de Abílio Diniz, do Pão de Açúcar. Felipe, que tinha sido contratado fazia pouco tempo, recebeu a incumbência de dar à revista um caráter menos de comportamento e mais de guia prático de estilo e moda. Formal, sempre impecavelmente vestido, cabelos fixados com gel, Felipe pareceu deslocado  na Abril do momento em que entrou à sua saída.

Sua administração titubeante custaria, em pouco tempo, o afastamento da equipe que comandava a VIP, a começar pelo diretor Marco Rezende. Um texto satírico sobre a possibilidade de um homem aumentar a renda fazendo michê foi tomado ao pé da letra, um episódio que me aborreceu muito. Felipe nada fez pelos seus subordinados. Expressei pessoalmente minha chateação a Roberto Civita. Marco, veterano de casa, teve depois disso uma conversa de despedida com RC. Me contou ter ouvido dele que eu estava ainda mais indignado do que ele próprio, Marco.

Marco se comportou como um samurai na demissão. Montaigne disse media os homens pelo modo como lidaram com a morte. Enfrentar a demissão, numa empresa, separa homens e meninos. Marco lutou pelos subordinados.  Assumiu a responsabilidade. Não conseguiu mudar muita coisa, mas selou ali um exemplo de conduta para quem quis ver.

Diante do acúmulo de queixas, não achei inteiramente ruim perder a VIP. Minha visão para a revista era diferente da visão da empresa. Quando isso acontece, as trombadas são frequentes, e desgastam cada vez mais.

Lá se ia meu recreio, meu amado recreio, a terra da fantasia onde habitava meu outro eu, mas a verdade é que eu já não tinha mais idade para recreio.