A internet é cruel como um cossaco russo para o amor

Atualizado em 29 de janeiro de 2015 às 21:37

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Eu confesso. Uma vez, há uns quatro anos, escrevi um conto na revista Vip com outro nome: Maurice Bendrix. Bendriz é personagem do meu romance preferido entre todos, Fim de Caso, de meu escritor também preferido entre todos, Graham Greene.

Adorei saber que o livro foi transformado em filme por um famoso diretor cujo nome não me lembro. Lembro apenas que fez The Crying Game. Também esqueci o título em português do filme. Mas em compensação sei bem a letra inteira da música que deu nome ao filme. Ela fala tão suavemente, tão tristemente, tão lindamente de amor. “First there are kisses, then there are sighs, and then before you know where you are, you´re saying goodbye.” Primeiro os beijos, então suspiros, e logo o adeus. Detesto minhas digressões, mas não consigo me livrar delas. É como se estivesse num carro desgovernado. Bem, fim da digressão.

O pseudônimo foi meu tributo sincero, mesmo que barato, a Greene. No conto se fala de um casal prestes a se desintegrar. Uma última, desesperada e afinal vã tentativa de acertar as coisas é feita numa viagem a Portugal. Os dois vão certa noite ao cassino de Estoril e um deles – francamente já não me lembro qual, e bem pode ser nenhum deles, e sim o narrador – reflete que a única esperança para ambos é que a bola que girava na roleta jamais parasse, jamais parasse, jamais parasse.

Nas vezes em que fui a Portugal, sempre deixei algum dinheiro em Estoril. Na última, vi numa mesa de roleta José Saramago, ou pode ser que fosse um sósia.

Uma bola de roleta que se paralisa: falei do conto apenas porque queria divagar, sonhar com a possibilidade de congelar um romance no seu melhor momento. Na véspera da queda, algumas vezes abrupta, outras mais suave, quase todas com a peculiaridade de só serem notadas depois de já terem percorrido um bom trecho.

Olho para trás e penso em Constanza, meu primeiro amor. Eu queria ter parado todos os relógios do mundo quando dei, numa festa, o primeiro beijo nela. Ou melhor: os relógios parariam segundos antes, quando me dei conta de que ela queria que eu a beijasse. Poucas vezes, em toda a minha vida, experimentei um gosto tão intenso, tão duradouro de triunfo como quando percebi que os lábios de Constanza estavam ao alcance do adolescente desajeitado de olhos sonhadores que deixei para trás. (Tenho que admitir que em outras ocasiões eu congelaria o tempo em situações bem menos ingênuas.)

Meu ponto é que na correria desenfreada da vida moderna a gente não encontra tempo para congelar (e depois saborear lentamente como uma sobremesa de ovos nevados) os grandes momentos românticos que acabamos de ter. Você nem bem termina um beijo e já está pensando no trabalho, na carreira, na multidão de compromissos. (Isso quando o celular não interrompe o encontro das línguas.) A vida moderna é cruel como um cossaco russo para o romance.

Maravilhosas passagens da vida romântica acabam nos escorrendo pelas mãos no ritmo frenético da internet sem que, muitas vezes, sequer percebamos como foram boas.

Perdemos a capacidade de parar e não fazer nada senão sonhar com coisas singelas, como um beijo bem dado. Temos que ir para a frente, estar sempre em movimentos, celulares ligados ininterruptamente. Quando sinto que minhas atitudes estão se enquadrando exatamente na descrição infernal acima, ponho para tocar uma canção do meu compositor e cantor predileto entre todos, John Lennon. Ele fala no prazer de ver os pneus rolarem, e rolarem, e rolarem, e não fazer nada além disso. E então me sento numa calçada e apenas observo, em preguiçosa e muda contemplação, o movimento circular e reconfortante dos pneus que giram pela rua.