“A maternidade é uma vocação como qualquer outra”: a experiência de Anaïs Nin em uma clínica clandestina de aborto

Atualizado em 27 de maio de 2015 às 10:34

O texto a seguir faz parte dos Diários de Anaïs Nin (1903 – 1977), e diz respeito ao verão de 1940, quando Nin, grávida de três meses, fez um aborto.

Anaïs Nin (1903 - 1977)
Anaïs Nin (1903 – 1977)

Eu cheguei às nove e meia e fui amarrada, como se fosse louca. Meus pulsos, braços, pernas e silhueta foram presos – uma estranha sensação de completa fragilidade. Então o médico entrou e, quando começou seu trabalho, percebeu que meu útero se dilatava com facilidade; e, portanto, deu continuidade ao procedimento apesar da dor monumental que eu sentia. Então, após seis minutos de tortura, eu havia passado pelo que, em geral, é feito com éter! Mas aquilo havia acabado. Eu não conseguia acreditar.

O único momento bonito nisso tudo aconteceu quando eu repousava em uma cama estreita no escritório do médico e outra mulher entrou. A enfermeira puxou a cortina, a fim de que eu não a visse. Ela foi instruída a se despir, se deitar e procurar relaxar. A enfermeira nos deixou.

Logo, ouvi um sussurro: “Como foi?” Eu a acalmei – disse que havia sido capaz de suportar aquilo sem éter e que, com ele, ela não sentiria nada.

Ela perguntou: “Há quanto tempo você estava grávida?”

“Três meses”.

“Eu estou de dois – mas estou amedrontada. Meu marido está longe. Ele não sabe… Ele não deve saber jamais”.

Eu não podia explicar que meu marido sabia, enquanto meu amante havia sido mantido na ignorância. Deitada, descrevendo em sussurros a dor que havia sentido, eu senti uma forte ligação com aquela mulher – que eu não conseguia ver ou identificar, aquela que, como eu, estava deitada, morrendo de medo, atingida por um obscuro senso de assassinato, ou culpa, e de uma luta bastante injusta contra a natureza – uma luta desigual com as leis feitas por homens, que nos prejudicam – que colocam nossas vidas em risco e nos expõe a médicos pouco qualificados, exploração financeira e condenação moral – a mulher é a vítima agora, apesar de sua coragem e de seu vigor. Há muitos argumentos contra a proibição do aborto. Que tragédia esse incidente representa para a mulher. No momento em que acontece, ela é realmente devastada. O médico, no fundo, está envergonhado – mas falsamente. A sociedade o condena. Tudo é feito em uma atmosfera de crime e enganação. E a pobre mulher que conversou comigo – ouvi-a sussurrar ao médico, depois: “Oh, senhor, eu lhe sou muito grata, muito grata mesmo!” Aquela mulher me emocionou. Eu queria conhecê-la. Eu queria abrir aquelas cortinas e vê-la. Mas percebi que ela era todas as mulheres – a modéstia, a reflexão, o terror e o momento quase infantil de profunda vulnerabilidade. Uma mulher grávida é certamente um ser angustiado. Cada gravidez é um conflito obscuro. Sua interrupção não é simples. Você está se desfazendo de um fragmento de carne e sangue. Como se isso não bastasse, há outros elementos angustiantes: a procura pelo médico, a luta contra a exploração, a atmosfera criminal. Transforma-se o aborto em um crime e em uma humilhação. E por que o seria? A maternidade é uma vocação como qualquer outra. Ela deveria ser escolhida livremente, e não imposta sobre a mulher.