A resposta da Globo ao Guardian expôs a fraude do mea culpa por 64. Por Kiko Nogueira

Atualizado em 24 de abril de 2016 às 14:24
Cunha e João Roberto Marinho na homenagem da Câmara à emissora
Cunha e João Roberto Marinho na homenagem da Câmara à emissora

 

A carta que João Roberto Marinho enviou ao Guardian em resposta a um artigo de David Miranda é reveladora.

Marinho, basicamente, admitiu que o processo de impeachment não tem base jurídica ao alegar que “tudo começou com uma investigação (chamada Operação Lava Jato), que descobriu o maior esquema de propina e corrupção da história do país”.

“O Grupo Globo não apoiou o impeachment em editoriais”, continua. “Culpar a imprensa para a atual crise política brasileira, ou sugerir que ela serve como uma agitadora, é repetir o erro antigo de culpar o mensageiro pela mensagem”.

A Globo apoia este golpe como apoiou o de 1964. Falta arranjar um apelido. Revolução já foi usado. “Redentora” também.

Quando na voz dos protagonistas, a história ganha outros contornos. Em 2014, um editorial do Globo realizou o famoso mea culpa pelo apoio de 50 anos antes.

“Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: ‘A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura’. De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura”.

“Há alguns meses, quando o Memória estava sendo estruturado, decidiu-se que ele seria uma excelente oportunidade para tornar pública essa avaliação interna. E um texto com o reconhecimento desse erro foi escrito para ser publicado quando o site ficasse pronto.

Não lamentamos que essa publicação não tenha vindo antes da onda de manifestações, como teria sido possível. Porque as ruas nos deram ainda mais certeza de que a avaliação que se fazia internamente era correta e que o reconhecimento do erro, necessário.

Governos e instituições têm, de alguma forma, que responder ao clamor das ruas.”

No final, lia-se a declaração de que “a democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma.”

Ler isso hoje, após o email de JRM ao Guardian, deixa claro que o pedido de desculpas era uma piada demagógica. Se a democracia é um valor absoluto, Cunha e Temer não poderiam ser relativizados.

Se o artigo de dois anos atrás fosse para valer, a Globo não embarcaria na aventura de Cunha e Temer com tanta facilidade.

A prática da casa fica mais explícita quando a conversa é mais relaxada e, portanto, sincera, sem o peso institucional. Em 1995, numa reportagem da Folha sobre o afastamento de Alexandre Garcia de Brasília por ser “governista”, outro irmão, Roberto Irineu Marinho, deu a perspectiva real do golpismo.

A certa altura, o repórter menciona uma minissérie que teria tratado a ditadura de forma “surpreendentemente crítica”. Seria um “revisionismo histórico”, pergunta ele?

Marinho devolve: “A Globo não está realizando revisionismo histórico algum e se sente plenamente confortável e orgulhosa em face do seu passado. Quanto à minissérie ‘Contagem Regressiva’, ela nos desagradou. Ao se limitar a condenar o regime autoritário, omitiu as grandes conquistas daquele período.

O que queríamos era que, a par da condenação aos males do regime, a começar pelo da opressão, pela perda da liberdade, se reconhecessem também os grandes feitos da época, e isso foi silenciado, com prejuízo para a isenção que exigimos em todo trabalho jornalístico. Eu reclamei disso em telefonema ao Alberico [Sousa Cruz, então diretor de jornalismo]”.

A conversa de 1995 é mais atual do que a tentativa de perdão de 2014. A Globo se sente confortável e orgulhosa de seu passado — e de seu presente. Houve “grandes feitos”, como os haverá com Temer, já que quem vai tentar monopolizar a narrativa será a mesma empresa.

Daqui a décadas, se for o caso, um novo mea culpa será produzido. Mas ninguém, especialmente quem assina, deve levá-lo a sério.