Ainda hoje existe trabalho escravo no Brasil

Atualizado em 26 de maio de 2013 às 21:10

O pesadelo de muitos imigrantes que chegam ao país para fugir na miséria.

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Costureiras bolivianas em situação irregular no Brasil

 

Este texto foi originalmente publicado na BBC Brasil.

No dia em que o Brasil comemora 125 anos da abolição da escravatura, especialistas ouvidos pela BBC Brasil afirmam que no cenário atual do combate ao trabalho escravo no país, a situação que desponta como a mais preocupante é a dos estrangeiros que chegam ao Brasil em busca de um eldorado de oportunidades.

A crescente demanda por mão de obra no país, resultante da expansão econômica na última década, tem exposto imigrantes de várias nacionalidades a condições de trabalho análogas às da escravidão – servidão por dívida, jornadas exaustivas, trabalho forçado e condições de trabalho degradantes.

Segundo Renato Bignami, coordenador do programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em São Paulo, o número de estrangeiros resgatados no Estado vem aumentando.

Ele afirma que, desde 2010, quando começaram as operações de combate ao trabalho escravo voltadas exclusivamente para estrangeiros, 128 bolivianos e um peruano foram resgatados no Estado de São Paulo, que concentra o maior contingente de trabalhadores estrangeiros do país.

Todos eles foram encontrados em oficinas de costura ilegais, terceirizadas por confecções contratadas por marcas conhecidas, como Zara, Cori, Emme e Luigi Bertolli.

“O número de resgatados está crescendo por causa de dois fatores: por um lado aumentou o interesse dos estrangeiros pelo Brasil, que muitas vezes entram de maneira irregular e se envolvem em condições de trabalho degradantes. Por outro, intensificamos as fiscalizações. Logo, a tendência é encontrarmos cada vez mais estrangeiros de nacionalidades variadas vítimas desse crime”, afirma o auditor-fiscal.

Ele estima que 300 mil bolivianos, 70 mil paraguaios e 45 mil peruanos estejam vivendo na região metropolitana de São Paulo, a maioria sujeita a condições de trabalho análogas à de escravo.

Além dos 128 bolivianos e um peruano resgatados em São Paulo, cerca de 80 paraguaios foram libertados de duas fazendas no Paraná em duas operações desde outubro do ano passado, segundo informações da ONG Repórter Brasil, que investiga o tema há mais de uma década.

Mas os imigrantes sul-americanos não são as únicas vítimas da escravidão contemporânea no Brasil. No mês passado, um chinês foi resgatado de uma pastelaria no Rio de Janeiro. Segundo a polícia, ele sofria agressões físicas e era submetido a condições de trabalho humilhantes.

Em dezembro de 2010, uma operação do Ministério Público do Trabalho libertou quatro chineses que eram explorados em uma madeireira na Zona Franca de Manaus.

Desde a semana passada, a fiscalização do MTE em São Paulo está apurando pela primeira vez denúncias de exploração de haitianos em oficinas de costura.

Haitianos dominam a paisagem no Acre
Haitianos dominam a paisagem no Acre

“Era só uma questão de tempo”, diz Bignami. “Esses trabalhadores de países pobres com problemas recentes, como o terremoto no Haiti, acham que o eldorado é no Brasil. Já sabíamos que essa mão de obra estava sendo muito aproveitada pela construção civil, mas para confecção ainda não”, afirma o auditor fiscal.

Na avaliação de Luiz Machado, Coordenador Nacional do Programa de Combate ao Trabalho Forçado e Tráfico de Pessoas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o número de estrangeiros resgatados não ilustra a realidade porque esses trabalhadores têm medo de serem encontrados, o que resulta em poucas denúncias. “É só a ponta de um iceberg”, diz Machado.

Utilizando os bolivianos como exemplo, ele conta que esses trabalhadores são aliciados ainda na Bolívia, atraídos por falsas promessas de emprego. Eles já chegam à cidade de destino, na maioria das vezes São Paulo, endividados com os custos da viagem e “acabam escravizados, com a liberdade cerceada por meio de dívidas e ameaças”.

Como entram no Brasil ilegalmente, eles têm medo de denunciar a exploração a que são submetidos e enfrentar a deportação, sem saber que a Resolução Normativa número 93 do Conselho Nacional de Imigração prevê a concessão de vistos de permanência para estrangeiros que estejam no país em situação de vulnerabilidade.

“Esse trabalhador não quer ser encontrado”, afirma o coordenador da OIT. “A situação no país de origem é tão ruim, que ele aceita a exploração como forma de alimentar o sonho de um dia virar o dono da oficina e ter uma vida melhor”.

As inspeções feitas nas oficinas de costura expõem um cenário degradante. Os imigrantes trabalham até 16 horas por dia, de segunda a sábado, amontoados em salas claustrofóbicas.

Eles dividem pequenos alojamentos improvisados instalados junto às oficinas, sem condições adequadas de higiene e ganham cerca de 300 reais por mês, sobre os quais são aplicados descontos ilegais relativos a gastos com alimentação, habitação e também com a viagem feita para o Brasil.

Como as denúncias são raras, Bignami diz que a maior parte das 50 oficinas desmontadas até agora no Estado de São Paulo são fruto do serviço de inteligência da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, que trabalha com base em cruzamento de dados e longas investigações.

O setor da construção civil atrai uma boa parte da mão de obra estrangeira, mas é na indústria do vestuário que os imigrantes estão mais sujeitos à exploração.

Bignami diz que há décadas a indústria têxtil vem substituindo funcionários contratados por mão de obra precária e informal. Para reduzirem seus custos, as confecções contratadas por grandes marcas terceirizam parte de sua produção por meio das oficinas de costura, na maioria das vezes ilegais.

“O fato de (o trabalhador) ser estrangeiro alimenta o sistema, porque se baseia na vulnerabilidade da pessoa, que fica escondida, não reclama”, afirma.

Até agora, cinco grandes redes varejistas têxteis foram responsabilizadas diretamente por trabalho em condição análoga à de escravo: Lojas Marisa, Pernambucanas, Gregory, Zara e Gep.

No total, foram emitidos cerca de 300 autos de infração que resultaram no pagamento de 6,5 milhões de reais em multas e notificações e mais de 1 milhão de reais em rescisões contratuais e indenizações pagas diretamente aos trabalhadores.

Para aumentar a punição dos empregadores que impõem condições de trabalho subumanas, o Estado de São Paulo aprovou em janeiro a lei nº 14.946/2013, que caça o registro do ICMS das empresas infratoras. A legislação foi sancionada pelo governador Geraldo Alckmin, mas ainda precisa ser regulamentada.

Uma vez resgatados e com indenizações individuais que podem chegar até 30 mil reais, o imigrante ganha um visto para permanecer no Brasil e a carteira de trabalho, tendo a opção de procurar um trabalho no mercado formal. As autoridades observam, no entanto, que a maioria desses trabalhadores prefere voltar para casa.

“Para os poucos que ficam aqui, procuramos dar apoio, oferecendo aulas de português e cursos profissionalizantes para ajudar na integração”, diz Bignami.