As lições que o pôquer ensina a você

Atualizado em 19 de setembro de 2009 às 18:22
Brunson, lenda vida do pôquer, e eu no Empire

“Acho que é ela”, Pedro, meu filho, me diz. Estamos na Leicester Square, em Londres. Não me pergunte por que, você come a sílaba do meio ao pronunciar Leicester. Fica “Léster”. É uma manhã bonita em Londres, ensolarada, um bom dia para ir aos parques e deitar na grama, um dos programas favoritos dos londrinos. A grama em Londres é acolhedora, macia, livre de formigas e outros insetos. Leicester Square é a área boêmia de Londres, o pedaço da cidade que não dorme, em que você encontra bares e restaurantes abertos a noite toda e cruza com pessoas que falam línguas de toda natureza, incluído o inglês.

“Ela quem?”, pergunto. Estamos entrando no Empire, cassino de Londres em está sendo  disputado um torneio daqueles que dão um bracelete, símbolo máximo do talento no jogo, o circuito World Series of Poker. Os seguranças do Empire dão uma olhada básica nas pessoas que não entrando no prédio, e estamos já descendo as escadarias quando Pedro se apresenta à garota. Aos 22 anos, Pedro é reservado, quase tímido, e é uma cena inusual a que estou vendo. Mas compreensível.

A mulher era Annette_15, a norueguesa Annette Obrestad, uma das celebridades internacionais do pôquer, uma menina que surgiu no pôquer na internet sob o codinome de Annette_15, uma referência à sua idade quando começou a jogar, e depois começou a brilhar também nas mesas reais, cara a cara com adversários temíveis. Conheci Annette numa reportagem, há quase dois anos, da Economist. Era um artigo primoroso que tratava do fenômeno global do pôquer, depois que uma emissora americana teve a idéia inovadora de mostrar, com câmaras sob a mesa, as cartas dos jogadores para espectadores como que hipnotizados diante do barulho das fichas e do tamanho das apostas. A inovação transformou o pôquer numa mania mundial. Especificamente, o Texas Hold’Em, uma variação americana que você aprende numa hora mas leva uma vida para dominar, para usar a frase clássica de um mestre. Com a televisão, os grandes jogadores ganharam prestígio, glamour, patrocínios milionários – todas aquelas coisas cintilantes reservadas às celebridades.

A foto que abria a reportagem da Economist dispensava legenda. Annette_15, uma adolescente com traços infantis e delicados, com uma montanha de fichas. A seu lado, o legendário Doyle Brunson, chapéu de caubói na cabeça, sem uma única ficha, derrotado pela garota no duelo final de um torneio. De Annette, posteriormente, eu ouviria uma história incrível, que sinceramente não sei se é lenda urbana: ela teria ganhado um campeonato na internet sem ver, uma única vez, as próprias cartas. Fez todo o seu jogo, segundo esta história, baseada nas atitudes dos adversários.

Ali está Anette_15, Obrestad, se encaminhando para o torneio no Empire. Franja e jeitinho de menina, pequena, passos apressados de quem tem um dia a dia agitado. As unhas estão pintadas de verde, e ela está claramente acima do peso, as bochechas infladas sugerindo que ela deve diminuir a dose de cartas e ampliar a de exercícios urgentemente. Digo a Annette que ela é célebre na comunidade de pôquer no Brasil, e ela abre um sorriso de garota. Annette é uma jovem milionária: apenas em torneios ao vivo, já levantou 2,7 milhões de dólares.

A inscrição para o torneio é 1 000 libras, ou pouco mais de 3 000 reais. Não é pouco, mas também não é tanto assim. Minhas finanças não chegarão a ser comprometidas. Jogo ou não jogo?

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“O pôquer pode ser um grande professor”

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Bill Gates, conforme você pode ver neste texto do New York Times, afirmou que aprendeu mais com o pôquer do que com os anos que passou em Harvard. O pôquer ensina você a correr riscos, a montar estratégias para lidar com adversários diferentes, a fazer cálculos, a ser flexível para se adaptar a novos rivais, a ser o menos apegado possível a dinheiro, a conhecer a instabilidade da sorte. E também ensina você a perder. Quem não sabe perder não pode jogar pôquer. Fato.

O pôquer pode ser um grande professor. Mas também, é verdade, se você perder o controle e apostar mais do que é capaz de bancar, pode ser sinistro como os ciganos búlgaros que se movimentam sorrateiros pelos subterrâneos de Praga em busca da carteira de desavisados. Num banheiro do Empire, você acaba de lavar as mãos e, ao secá-las, dá de cara com uma placa. “Problemas com o jogo? Se você acha que está perdendo o controle, procure-nos.” A placa mostra onde os descontrolados podem buscar ajuda.

O bom jogador de pôquer traça, desde cedo, um limite: jamais jogar acima de suas possibilidades. Também nessa disciplina – não gastar mais do que você pode, seja na mesa de jogo ou em qualquer outra coisa – o pôquer é um bom professor.

Em nove meses de Londres, praticamente não joguei. Umas poucas vezes um torneio de 20 libras no Empire: nas duas últimas cheguei à mesa final e curiosamente fiquei em ambas em quarto lugar.  Em cada uma ganhei umas 200 libras. Numa outra fase da vida, com um grupo de amigos queridos, joguei anos seguidos todas as quartas-feiras na casa de minha tia Lili, uma segunda mãe que tive. Jogávamos o hoje obsoleto pôquer europeu, sete para cima, cinco cartas nas mãos e a possibilidade de trocar até quatro delas. No meio da refrega, a torta de frango e o pudim incomparáveis da Cruzinha. Lili, Helena, Zé Roberto, César, Mário em sua cadeira de rodas, depois Danilo, Cabeção e Pedro. Devo a todos eles momentos inesquecíveis na vida: emoção, suspense, piadas, tiradas que levarei sempre comigo. Todas as mesas são marcadas por frases definitivas. “Tem dias que de noite é assim”, nas jornadas azaradas, é um clássico, para mim. “”Vou pelo esplendor da mesa”, quando você completa a aposta antes de ver novas cartas por causa do pote suculento, é outro clássico.

Jamais, em todos estes anos, ultrapassei a fronteira do cacife financeiramente confortável para mim, e transmiti esse mandamento sagrado a Pedro, o único dos meus três filhos que se interessou pelo pôquer, no qual acabou por se tornar melhor que eu.

Jogo ou não, eu me perguntava ao descer a escadaria do Empire. Me lembrei de uma história contada a mim por Zé Roberto. Um jornalista inglês que jogava pôquer com os amigos, num esquema de completo amadorismo como o meu, decidiu experimentar a sorte numa temporada em Las Vegas. Foi amassado pelos profissionais, mas recolheu material para um livro bem sucedido, que li com enlevo há uns quinze anos.

Uma vez na vida, eu pensava. A mesma reflexão me levou a pagar 175 euros a um cambista para ver a final de Roland Garros em que Federer teve uma conquista histórica. Fora mais 120 euros para o motorista do táxi em que deixei as minhas malas, já prontas para a volta a Londres depois de uma missão jornalística penosa em Paris, a cobertura da queda do avião da Air France.

Ali em Paris o argumento de uma vez na vida me fez assistir ao jogo, e depois escrever sobre ele no domingo mesmo para o site da Época.

Annette_15: a jovem sensação durou pouco desta vez

Mas em Londres não. Depois de uma demorada reflexão, achei enfim que teria um esforço mental demasiadamente intenso para competir ali com os grandes jogadores. O pôquer me ensinou a reconhecer meus limites também psicológicos. Mas encorajei Pedro a participar: uma experiência fascinante que ele levaria sempre vida afora, ali no meio dos heróis transatlânticos das cartas que você só vê pela televisão.

Fiquei algum tempo no Empire. Me credenciei como jornalista, tirei fotos, andei por umas duas horas pelas mesas. Vi por alguns minutos Annette em ação, alvo dos olhares admirados de muitas pessoas. Óculos escuros, fichas sempre na mão direita, descartando as cartas com a perícia graciosa de uma profissional, Annette não estava num bom dia, percebi. Parecia desconcentrada, desinteressada. Não me surpreendi, mais tarde, ao saber que fora eliminada muito antes das mesas finais, em que já se ganha dinheiro. Vi circularem pelas mesas, prontas a massagear jogadores tensos, garotas sorridentes de uniforme branco, as merecidamente aclamadas Ibiza Angels do Empire, umas loiras, outras morenas, todas atraentes sem ser vulgares.

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Hellmuth: “Fui batido por minha nêmesis, a impaciência”

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Num giro, meus olhos encontram uma figura familiar. O caubói batido por Annette, o mítico Doyle Brunson. Vi no YouTube um vídeo de uma jogada espetacular na qual Brunson, com a bravura de um caubói e a habilidade de um jogador incomum, paga uma aposta pesada de Guy Laliberte, o bilionário dono do Cirque du Soleil, num pote de 1milhão de dólares. E leva. Brunson, 76 anos, chapéu claro e vistoso de Roy Rogers, está amparado a uma muleta. Não está jogando. Conversa com alguém que não reconheço, numa mesa lateral. Tem uma garrafa de água nas mãos. Não resisto. Me aproximo, peço licença, cumprimento Brunson, que me dá um sorriso simpático e afável, e pergunto ao outro homem se poderia tirar uma foto. “Claro”, diz ele. É tecnicamente, tenho que reconhecer, a melhor foto do torneio tirada pela Nikon azul, modesta, comprada às pressas numa loja na Champs Elysée para a cobertura da missa de Notre Dame em que foram homenageados os mortos do vôo da Air France.

Pergunto a Brunson por que ele não está jogando. “Não estava com vontade”, ele me diz. Mais tarde, vejo no twitter uma foto de Brunson com o homem que gentilmente fez a foto que pedi. Ali aparecia seu nome, e no Google fui saber que era, simplesmente, o presidente do World Series of Poker, Jeffrey Pollack. Entrei no twitter dele, e vi um pequeno texto em que ele dizia que estava com Brunson, tirando fotos para “admiradores de todos os cantos”. A mensagem, vi, fora postada logo depois de meu pedido. Aos 53, agindo como um menino.

LOL.

O torneio, que arrecadou 626 000 libras, termina apenas segunda-feira. Para algumas celebridades, como Annette, o fim veio antes. O controvertido Phil Hellmuth, que também participou do torneio, caiu fora em 81 minutos, contados por ele mesmo. “Fui batido por minha nêmesis, a impaciência”, pôs ele em seu twitter. Um outro jogador durou um pouco mais, 3 horas, e escreveu no twitter que havia um lado bom em sua eliminação: a chance de desfrutar um dia lindo em Londres.

Eu estava vendo a mesa de Chris Ferguson, o “Jesus”, outro gigante do pôquer, quando alguém bate em minhas costas. Era Pedro. Busted. Eliminado. Ás e rei de paus, fichas perigosamente diminuindo, foi para o all in depois de uma série de apostas e repiques em que sobraram ele e mais um num showdown, um duelo. Perfeito o movimento de meu filho. Pedro ficou fortíssimo no flop, as primeiras três cartas comunitárias, viradas de uma vez só. Rei e dois paus ali. Par alto e pedida para flush, e ainda mais duas cartas por abrir. Só que o adversário tinha AA, American Airlines na gíria dos jogadores, o melhor jogo que você pode ter nas mãos. Pedro acabou brutalmente abatido pelo American Airlines.

Tempo de voltar para casa. O torneio só termina na segunda-feira. A bordo do 14 rumo a Putney Bridge, noto em Pedro um certo desapontamento. Mais uma lição que o pôquer está dando a ele: aprender a lidar com as frustrações. De resto, ele durou mais que Hellmuth, quase tanto quanto Annette_15 e ainda pôde, como o jogador anônimo, desfrutar de um dia belo em Londres, daqueles em que os londoners se espalham, em massa, pelas gramas hospitaleiras dos parques da cidade numa saudação alegre ao sol e à natureza.