Chico, samba, setenta e poesia

Atualizado em 21 de junho de 2014 às 2:34

chico buarque velho

Chico Buarque fez setenta anos ontem e esta é uma boa oportunidade para falar um pouco sobre sua obra.

Chico é vítima da “maldição” da língua portuguesa. É a mesma sofrida por Machado de Assis, Fernando Pessoa ou outros poucos autores, poetas e compositores que estão, qualitativamente, entre os maiores da história da humanidade, mas ficam um degrau abaixo no reconhecimento universal.

A poesia é especialmente difícil de ser traduzida, o que torna tudo ainda mais injusto. Mas independentemente do reconhecimento, Chico é equivalente a Bob Dylan, amplamente reconhecido como o maior poeta da música.

Ao mesmo tempo, Chico se utilizou positivamente do português, provavelmente a língua mais rica do mundo. Você pode ser emocionalmente mais preciso no português do que no inglês (e grande parte das outras línguas), pelas possibilidades gramaticais, sobretudo.

Entre os compositores, eu não conheço ninguém que tenha escrito como Chico Buarque. Isso, no mundo inteiro e em todos os tempos. E diria que ninguém, incluindo poetas não-musicais, teve ou tem a mesma, digamos, estabilidade criativa.

Chico não foi como tantos artistas que sentam em cima das glórias passadas. Foram décadas de obras muito boas e surpreendentes, mesmo já tendo feito e falado tanta coisa.

É evidente que Chico Buarque não é infalível. Para o meu gosto, ele se excede no artifício de uso do infinitivo. “A sonhar”, “a andar”, “a cozinhar”, etc. É um artifício costumeiramente de preguiçosos – é fácil rimar assim. Mas é engraçado dizer isso, porque o perfeccionismo é um dos traço mais claros de sua obra.

Fora do campo poético, Chico escreveu alguns livros que nem me atrevo a criticar, pela limitação do meu conhecimento em literatura de prosa. Posso dizer, no entanto, que sequer cheguei ao fim de “Budapeste”, o único que tentei ler. Não gostei.

Mas Chico é Chico na música. Não na prosa, não na política, não na decoração de sua casa.

Vou comentar uma canção em especial, uma das grandes passagens do compositor que acho pertinente invocar depois das mortes de operários nas obras da Copa do Mundo: “Construção”.

Adianto que não me impressiono com a teoria tecnocrática das proparoxítonas em “Construção”. Eu poderia apostar que é uma questão muito mais rítmica do que vontade de acabar com proparoxítonas por capricho. Não duvidaria que ele tivesse notado a estrutura gramatical só depois de escrever.

Essa música se divide em dois objetos fundamentais: a construção do arranjo, montado gradativamente como se fosse uma construção mesmo (que até cai no fim); e a tristeza da história.

Mas se você dá um passo à frente na interpretação, pode notar que o que a torna tão triste não é exatamente a morte do operário que tropeçou no alto da construção em que trabalhava.

Também não é o fato de sua mulher não ser a única, nem que o cara tem que beber “essa cachaça desgraça” para suportar as coisas. É sobretudo o fato de ele ser tão irrelevante e pequeno para o senso comum que o headline é “morreu na contra-mão atrapalhando o tráfego”.

É o típico detalhe quase subliminar ao estilo Chico Buarque. Dá um sentido muito mais amplo para a história do que ele aparenta contar.

Tenho a sensação de que este senso comum mudou para melhor desde que a música foi escrita. Talvez, em alguma parte, em razão da própria crítica que a música faz.

Os operários mortos nas obras da Copa foram muito lamentados. É certo que a Copa dá holofotes para isso. Deve haver mais operários mortos por aí que nós sequer ouvimos falar.

Ainda assim, foi um alento ver a comoção em torno dessas mortes – a genuína, não a cínica anti-tudo-que-está-aí. Esses cínicos, na verdade, gostaram que os caras morreram, porque isso comprovaria suas teses de que o Brasil está à beira do abismo e o mundo está acabando.

Esse povo da indignação cretina e oportunista é exatamente quem Chico Buarque retratou em Construção. Não falo do operário que caiu do céu como se fosse pássaro. Falo dos transeuntes que ali só viram um corpo na contra-mão atrapalhando o tráfego.

Chico Buarque, se não é reconhecidamente uma das grandes glórias da humanidade, é um monumento brasileiro. Sua contribuição vai muito além da música, embora para mim, o grande Chico seja o compositor.

Que tenha um feliz aniversário e muitos anos de vida. E que nesses anos, continue contribuindo com sua inteligência para, como de costume, transformar o mundo ao seu redor.

Chico é um cara muito forte e muito grande.

chico-buarque

Compartilhar
Artigo anteriorO verdadeiro pecado de Mario Sergio Conti
Próximo artigoChico, samba, setenta e poesia
Emir Ruivo é músico e produtor formado em Projeto Para Indústria Fonográfica na Point Blank London. Produziu algumas dezenas de álbuns e algumas centenas de singles. Com sua banda, Aurélios, possui dois álbuns lançados pela gravadora Atração. Seu último trabalho pode ser visto no seguinte endereço: http://www.youtube.com/watch?v=dFjmeJKiaWQ