Coca, Cuba, classe média e crucifixo comunista: o papa fala de sua viagem à América do Sul

Atualizado em 14 de julho de 2015 às 9:42

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Do Unisinos:

 

A costumeira conversa do papa com os jornalistas durante o voo de retorno a Roma, desta vez a partir da América Latina, durou cerca de uma hora. Foram muitas as perguntas. O papa respondeu às primeiras três perguntas em espanhol e as seguintes em italiano. E brincou que também poderiam ser feitas até em guarani, uma das línguas oficiais do Paraguai.

Alguns trechos:

Stefania Falasca (Avvenire) — No discurso que o senhor fez na Bolívia aos movimentos populares, o senhor falou do novo colonialismo e falou da idolatria do dinheiro que submete a economia, e da imposição dos meios de austeridade que sempre apertam, como o senhor disse, o cinto dos pobres. Agora, há semanas, nós, na Europa, temos esse caso da Grécia e do destino da Grécia que corre o risco de sair da moeda europeia: o que o senhor pensa do que está acontecendo na Grécia e que também diz respeito a toda a Europa?

Acima de tudo, sobre a minha intervenção no congresso dos movimentos populares: é o segundo. O primeiro foi feito no Vaticano, na Aula Velha do Sínodo, havia cerca de 120 pessoas. É algo organizado pelo [Pontifício Conselho] Justiça e Paz. Eu estou perto disso, porque é um fenômeno em todo o mundo, em todo o mundo. Também no Oriente, nas Filipinas, na Índia, na Tailândia. São movimentos que se organizam entre si não só para fazer um protesto, mas também para seguir em frente e poder viver. E são movimentos que têm força, e essas pessoas, que são tantas e tantas, não se sentem representadas pelos sindicatos, porque dizem que os sindicatos agora são uma corporação, não lutam – agora estou simplificando um pouco –, mas a ideia de muitas dessas pessoas é que eles não lutam pelos direitos dos mais pobres.

E a Igreja não pode ser indiferente. A Igreja tem uma Doutrina Social e dialoga com esse movimento, e dialoga bem. Vocês viram o entusiasmo de sentir que a Igreja não está longe de nós, a Igreja tem uma doutrina que nos ajuda a lutar por isso. É um diálogo. Não é que a Igreja faz uma opção pelo caminho anárquico. Não, eles não são anárquicos: eles trabalham, tentam fazer muitos trabalhos, também com os resíduos, com as coisas que sobram. São trabalhadores de verdade. Essa é a primeira coisa, a importância disso.

Depois, sobre a Grécia e o sistema internacional: eu tenho uma grande alergia à economia, porque o papai era contador e, quando não acaba o trabalho na fábrica, ele o trazia para casa, no sábado e no domingo, com aqueles livros, daqueles tempos, em que os títulos eram escritos em gótico… E trabalhava, e eu via o papai… E tenho uma alergia. Eu não entendo bem como é a coisa, mas certamente seria simples dizer: a culpa é apenas desta parte. Os governantes gregos que levaram adiante essa situação de dívida internacional também têm uma responsabilidade.

Com o novo governo grego, chegou-se a uma revisão um pouco justa. Eu espero – é a única coisa que eu posso lhe dizer, porque não sei bem… – que encontrem um caminho para resolver o problema grego e também um caminho de supervisão para que outros países não caim no mesmo problema, e que isso nos ajude a ir em frente, porque esse caminho do empréstimo e das dívidas, no fim, não termina nunca.

Disseram-me que, há um ano, mais ou menos, mas não sei se… esta é uma coisa que eu ouvi… que havia um projeto nas Nações Unidas (se algum de vocês sabe disso, seria bom que explicasse), havia um projeto para o qual um país pode se declarar em falência, que não é o mesmo que o default, mas é um projeto que eu ouvi e que não sei como foi, se era verdade ou não. Digo isso para ilustrar como uma coisa que eu ouvi, mas se uma empresa pode fazer uma declaração de falência, por que um país não pode fazê-la, e assim se vai à ajuda dos outros?

Esses eram os fundamentos desse projeto, mas sobre isso eu não posso dizer mais nada. Depois, quanto às novas colonizações: evidentemente, vão todas sobre os valores. A colonização do consumismo. O hábito do consumismo foi um progresso de colonização. Porque é o hábito: leva você a um hábito que não é o seu e também desequilibra a sua personalidade. O consumismo também desequilibra a economia interna e a justiça social, e também a saúde física e mental, apenas para dar um exemplo.

Anna Matranga (CBS News) – Vossa Santidade, uma das mensagens mais fortes dessa viagem foi que o sistema econômico global muitas vezes impõe a mentalidade do lucro a todo o custo, em detrimento dos pobres. Isso é percebida pelos americanos como uma crítica direta do seu sistema e do seu modo de vida. Como o senhor responde a essa percepção? E qual é a sua avaliação do impacto dos Estados Unidos no mundo?

O que eu disse, essa frase, não é nova. Eu a disse na Evangelii gaudium: “Essa economia mata”. Dessa frase eu me lembro bem, há um contexto. E eu a disse na Laudato si’. A crítica não é uma coisa nova, como se sabe. Ouvi que algumas críticas foram feitas nos Estados Unidos. Eu ouvi isso. Mas eu não as li e não tive o tempo para estudá-las bem, porque cada crítica deve ser recebida e estudada, para, depois, fazer o diálogo. Você vai me perguntar o que eu penso, mas, se eu não dialoguei com aqueles que fazem as críticas, eu não tenho o direito de fazer um pensamento assim, isolado do diálogo. Isso é o que eu tenho a dizer.

O senhor agora vai aos Estados Unidos. Tem uma ideia de como será recebido, tem algum pensamento sobre a nação…

Não, devo começar a estudar agora, porque até hoje eu estudei esses três países belíssimos, que são uma riqueza e uma beleza. Agora, devo começar a estudar Cuba, porque vou para lá dois dias e meio, e depois os Estados Unidos, as três cidades do Leste – porque ao Oeste eu não posso ir –, Washington, Nova York e Filadélfia. Sim, devo começar a estudar essas críticas e, depois, dialogar um pouco.

Aura Vistas Miguel – Santidade, o que sentiu quando viu aquela foice e martelo com Cristo em cima, oferecido pelo presidente Morales? E onde acabou esse objeto?

É curioso, eu não conhecia isso e nem sabia que o padre Espinal era escultor e poeta até. Soube disso nestes dias. Quando o vi, para mim, foi uma surpresa. Segundo, pode-se qualificar como o gênero da arte de protesto.

Por exemplo, em Buenos Aires, há alguns anos, foi exibida uma mostra de um escultor bom, criativo, argentino, que agora está morto. Era arte de protesto, e eu recordo um Cristo crucificado em um bombardeiro que caía. Era uma crítica ao cristianismo aliado com o imperialismo, que bombardeia.

Então, primeiro, eu não sabia; segundo, eu o qualificaria como arte de protesto, que, em alguns casos, pode ser ofensivo. Em alguns casos. E terceiro, este caso concreto: o padre Espinal foi morto no ano de 1980. Era um tempo em que a teologia da libertação tinha muitos ramos. Um desses ramos propunha a análise marxista da realidade. O padre Espinal pertencia a isso. Eu sabia disso, sim, porque, nesses anos, eu era reitor na faculdade de teologia e se falava muito disso, os diversos ramos e os representantes.

No mesmo ano, o geral da Companhia de Jesus [Pe. Pedro Arrupe] mandou uma carta para toda a Companhia sobre a análise marxista da realidade na teologia. Um pouco freando isso e dizendo: isso não está bem, são coisas diferentes, não é justo, não está certo. E, quatro anos depois, em 1984, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou o primeiro documento, pequeninho, uma primeira declaração sobre a teologia da libertação que critica isso. Depois, veio o segundo, que abriu as perspectivas mais cristãs (estou simplificando, hein). Ou seja, façamos a hermenêutica naquela época.

Espinal era um entusiasta dessa análise da realidade marxista e também da teologia usando o marxismo. Daí veio essa obra. As poesias de Espinal também era desse gênero de protesto, mas era a sua vida, era o seu pensamento, era um homem especial, com tanta genialidade humana e que lutava. Ele tinha boa fé. Fazendo uma hermenêutica desse tipo, eu entendo essa obra. Para mim, não foi uma ofensa, mas eu tive que fazer essa hermenêutica, e digo isso a vocês para que não haja opiniões equivocadas.

Onde ficou a cruz?

Eu a trago comigo. O presidente Morales quis me dar duas condecorações, a mais importante da Bolívia e a outra é a ordem do padre Espinal, uma nova ordem. Jamais aceitei uma honorificência, não sei, não me sinto bem. Mas ele fez isso com tanto vontade, com boa vontade e com o prazer de me dar um prazer, e eu pensei que isso vem do povo da Bolívia e rezei para saber o que fazer com isso. Se eu as levo ao Vaticano, vão parar no Museu, vão acabar aí, e ninguém jamais vai vê-las. Então, pensei em deixá-las à Nossa Senhora de Copacabana, a mãe da Bolívia, que vão para o santuário, ficarão no santuário. Ao contrário, o Cristo, eu trago comigo.

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Javier Martínez Brocal (Rome Reports) – Santidade, muito obrigado por este diálogo que nos ajuda tanto pessoalmente e também no nosso trabalho. Faço a minha pergunta em nome também de todos os jornalistas de língua espanhola. Vimos como deu certo a mediação entre Cuba e os Estados Unidos. O senhor acha que se pode fazer algo semelhante em outras situações delicadas do continente latino-americano? Penso na Venezuela e também na Colômbia. Depois, uma curiosidade: penso no meu pai, que tem alguns anos a menos do que o senhor, mas tem a metade das energias. Vimos isso nesta viagem, vimos isso nesses dois anos e meio. Qual é o seu segredo?

Qual é a sua “droga”, ele gostaria de perguntar… (risos). É, essa era a pergunta! (risos) O processo entre Cuba e os Estados Unidos não foi mediação. Não teve o caráter de mediação. Havia um desejo que tinha chegado. Por outro lado, também, desejo… E, depois, digo a verdade, isso foi em janeiro do ano passado, e depois se passaram três meses em que eu só rezava sobre isso, não me decidi: mas o que se pode fazer com esses dois, depois de mais de 50 anos que estão assim? Mas depois o Senhor me fez pensar em um cardeal.

Ele foi lá, falou, e depois eu não soube de nada. Passaram-se meses, e, um dia, o secretário de Estado (que está aqui) me disse: “Amanhã teremos a segunda reunião com as duas equipes” – “Mas como ?” – “Sim, eles se falam, entre os dois grupos se falam e estão fazendo…”. Foi sozinho, não foi mediação, foi a boa vontade dos dois países: o mérito é deles, são eles que fizeram isso. Nós não fizemos quase nada, apenas pequenas coisas, e, em meados de dezembro, foi anunciado. Essa é a história, de verdade, não há mais.

Preocupa-me neste momento que não pare o processo de paz na Colômbia. Isso eu tenho que dizer isso e espero que esse processo vá em frente, e, nesse sentido, nós estamos sempre dispostos a ajudar, de muitos modos de ajuda. Mas seria uma coisa ruim que não pudesse ir em frente. Na Venezuela, a Conferência Episcopal trabalha para fazer um pouco de paz, mas ali também não há nenhuma mediação. Na questão dos Estados Unidos, foi o Senhor e duas coisas por acaso, e depois foi em frente sozinho. Para a Colômbia, eu espero e rezo, e devemos rezar, para que não pare esse processo. É um processo que dura mais de 50 anos ali também, e quantos mortos! Ouvi dizer que são milhões. Sobre a Venezuela, não tenho mais nada a dizer para você. Ah… a “droga”. Mas… o mate me ajuda, mas não provei a coca. Isso é claro, hein!

Ludwig Ring-Eifel (KNA) – Santo Padre, nesta viagem, ouvimos tantas mensagens fortes para os pobres, também tantas mensagens fortes, às vezes severas, para os ricos e os poderosos, mas uma coisa que ouvimos pouquíssimo foram mensagens para a classe média, isto é, as pessoas que trabalham, as pessoas que pagam os impostos, as pessoas normais, portanto. A minha pergunta é: por que no magistério do Santo Padre há tão poucas mensagens para essa classe média? E, se houvesse tal mensagem, qual seria?

Muito obrigado, é uma bela correção, obrigado! Você tem razão, é um erro da minha parte. Devo pensar sobre isso. Farei alguns comentários, mas não para me justificar. Você tem razão, eu devo pensar um pouco. O mundo é polarizado. A classe média torna-se menor.

A polarização entre ricos e pobres é grande, isso é verdade, e talvez isso me levou a não levar em conta isso. Falo do mundo, alguns países não, vão muito bem, mas no mundo em geral a polarização se vê, e o número dos pobres é grande. Depois, por que eu falo dos pobres? Mas porque está no coração do Evangelho, e eu sempre falo a partir do Evangelho sobre a pobreza, embora seja sociológica. Depois, sobre a classe média, há algumas palavras que eu disse, mas um pouco en passant. Mas as pessoas simples, as pessoas comuns, o operário… esse é um grande valor. Mas eu acho que você me diz uma coisa que eu devo fazer, devo aprofundar mais o magistério sobre isso. Eu lhe agradeço pela ajuda, hein! Obrigado!

Courtney Walsh (Fox News) – Santidade, falamos um pouco de Cuba, aonde o senhor vai em setembro, antes de ir para os Estados Unidos, e do papel que o Vaticano teve na sua aproximação. Agora que Cuba terá um papel maior na comunidade internacional, na sua opinião, Havana deverá melhorar a sua reputação no respeito dos direitos humanos, incluindo a liberdade religiosa? E o senhor acredita que Cuba corre o risco de perder algo nessa nova relação com o país mais poderoso do mundo?

Mas os direitos humanos são para todos e não se respeitam os direitos humanos apenas em um ou dois países. Eu diria que em muitos países do mundo não se respeitam os direitos humanos, em tantos países do mundo! E o que Cuba perde e o que os Estados Unidos perdem? Todos os dois vão ganhar algo e vão perder algo, porque em uma negociação é assim. Mas o que todos os dois vão ganhar é a paz. Isso é certo. O encontro, a amizade, a colaboração: esse é o ganho. Mas o que vão perder, eu não consigo pensar, serão coisas concretas, mas sempre em uma negociação se ganha e se perde. Mas voltando aos direitos humanos e à liberdade religiosa: pensem, no mundo, há países, também alguns países europeus, que não deixam você fazer um sinal religioso, não? Por diversos motivos, não? E, em outros continentes, o mesmo, não? Sim, isso. A liberdade religiosa não é respeitada em todo o mundo. Há tantos países e que isso não acontece.

Benedicte Lutaud – Vossa Santidade, o senhor se coloca como o novo líder mundial das políticas alternativas. Eu gostaria de saber por que o senhor aponta tanto para os movimentos populares e menos para o mundo da empresa. E se o senhor pensa que a Igreja irá segui-lo na sua mão estendida aos movimentos populares que são muito seculares.

Obrigado! O mundo dos movimentos populares é uma realidade. É uma realidade muito grande, em todo o mundo. Eu, o que fiz? O que eu fiz foi lhes dar a Doutrina Social da Igreja, o mesmo que eu faço com o mundo da empresa. Existe uma Doutrina Social da Igreja. Se você ler o que eu disse aos movimentos populares, que é um discurso bastante grande, é um resumo da Doutrina Social da Igreja, mas aplicada à sua situação. Mas é a Doutrina Social da Igreja. Tudo o que eu disse é Doutrina Social da Igreja, e quando eu devo falar com o mundo da empresa, eu digo o mesmo, isto é, o que a Doutrina Social da Igreja diz sobre o mundo da empresa. Por exemplo, na Laudato si’, há uma parte sobre o bem comum e também sobre a dívida social da propriedade privada que vai nesse sentido; mas é aplicar a Doutrina Social da Igreja.

Cristina Cabrejas – Santo Padre, o senhor não tem um pouco de medo que o senhor e os seus discursos sejam instrumentalizados pelos governos, pelos grupos de poder, pelos movimentos. Obrigado.

Um pouco eu repito o que disse no início. Cada palavra, cada frase de um discurso pode ser instrumentalizada. É o que o jornalista equatoriano me perguntava. Justamente a mesma frase, alguns diziam que era pró-governo, e os outros, que era contra o governo. Por isso, eu me permiti de falar da hermenêutica total. E sempre são instrumentalizadas.

Às vezes, vêm notícias que tomam uma frase e ainda fora do contexto. Sim, eu não tenho medo, simplesmente digo: olhem para o contexto! Se eu erro, com um pouco de vergonha, peço desculpas e vou em frente.

Permita-me uma brincadeira: o que o senhor pensa de todas essas autofotos, selfies, no meio da missa, que se fazem os jovens, as crianças, os colegas?

O que eu penso? É outra cultura. Eu me sinto um bisavô! (risos) Hoje, ao me despedir, um policial, grande, deveria ter uns 40 anos, me disse: “Faço um selfie”. Eu lhe disse: “Mas você é um adolescente!” (risos) Sim, é outra cultura, mas eu a respeito.