Como Sergio Moro usurpou competência do STF e ficou livre de delegado que discordava da delação de Yousseff

Atualizado em 29 de junho de 2019 às 0:51
Ex-delegado Gérson Machado: ele questionou a primeira delação de Yousseff

Esta reportagem é resultado do projeto de Crowdfunding “Lava Jato: Das Origens à Perseguição a Lula”. 

Uma das muitas lendas que se criaram em torno da Lava Jato está a de sua origem, em 2006. Em uma das biografias de Sergio Moro, o jornalista Vladimir Neto, que é também repórter da TV Globo, conta que em 2006 o procurador Deltan Dallagnol fez um pedido à Polícia Federal em Londrina para investigar o doleiro Alberto Yousseff.

Segundo ele, o Ministério Público Federal de Curitiba  havia recebido um alerta do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) de que assessores do deputado José Janene haviam feito movimentação suspeita em suas contas: “depósitos fracionados e saques de dinheiro em espécie”.

Não é verdade.

A origem ainda é nebulosa, mas o que se sabe e se pode provar com documentos é que o nome de Yousseff apareceu em uma interceptação telefônica conduzida pelo delegado Gérson Machado, de Londrina. Ele encaminhou a Sérgio Moro um pedido para a abertura de investigação formal, a partir do que havia captado no grampo.

“Assim, demonstrados indícios veementes de que ALBERTO YOUSSEFF sabe e participa, juntamente com JOSÉ JANENE, como mentor das artimanhas para lavar dinheiro do Deputado através da esposa dele, STAEL, e seus assessores ROSA e MEHEINDIN, é que se REPRESENTA pela instauração de PCD (Procedimento Criminal Diverso)”,escreveu.

Machado havia escutado a gravação telefônica entre o advogado Adolfo Gois e Roberto Brasiliano, em que falam sobre um jantar na casa de Janene, em um condomínio de alto padrão de Londrina, onde foram tratados assuntos aparentemente relacionados à lavagem de dinheiro.

Segundo o advogado Anderson Bezerra Lopes, que a pedido do DCM apresenta as 10 maiores ilegalidades da operação, essa escuta é, por si só, ilegal, já que se trata de conversa entre um advogado e seu cliente, inviolável segundo a Constituição, e por isso não poderia se recebida como prova de crime.

Apesar disso, Moro decidiu pela abertura de um inquérito e se colocou como juiz responsável pela investigação, o que o advogado interpreta como outra ilegalidade: a representação do delegado é clara ao afirmar que Yousseff trabalha para Janene, na época deputado federal, e portanto sujeito a foro por prerrogativa de função.

Em outras palavras, Janene só poderia ser investigado com autorização do Supremo Tribunal Federal. “Ele deveria ter remetido a investigação para o Supremo, mas não fez isso. Ele usurpou da competência da suprema corte”, afirma Anderson.

O juiz justificou sua decisão pelo fato de, dois anos antes, ter homologado o acordo de delação premiada de Yousseff. A notícia de que o doleiro estaria de novo cometendo crime era, para Moro, motivo suficiente para colocar a investigação sob sua jurisdição.

Moro e o delegado Gérson Machado divergiam sobre Yousseff, segundo registro da advogada Dora Cavalcanti, que defendeu a Odebrecht na Lava Jato. Formada pela USP e uma espécie de herdeira profissional do ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, com quem deu os primeiros passos na advocacia, Dora foi dura no início da Lava Jato e denunciou várias vezes abusos cometidos pelo juiz.

Nas alegações finais do processo do executivo Márcio Faria, num texto assinado por ela e mais três advogados, Dora traz à tona essa divergência, ao destacar uma manifestação de Moro sobre um pedido de suspeição apresentado contra ele. É que Moro não aceitou ficar à frente de um inquérito, o de número 2007.7000007074-6, por entender que “havia sido instaurado pela autoridade policial com base em mera discordância dos termos de anterior acordo de delação premiada entre o MPF e Alberto Yousseff (do ano de 2004), não havendo até então base probatória concreta que justificasse as diligências requeridas pelo bem intencionado, mas equivocado Delegado da Polícia Federal”

Que discordância era esta?

Uma pista pode ser encontrada no depoimento que o delegado Gérson Machado, a autoridade policial de que fala Moro, prestou a ele em 2016, a pedido da defesa da Odebrecht. Um advogado pergunta se ele havia denunciado ao juiz que Yousseff mentiu no acordo de delação premiada em 2004. Machado confirma.

O advogado pergunta se se tratava da informação de que Yousseff escondeu 25 milhões de dólares no acordo de delação premiada.

“Não sei se o valor era esse ou mais ou menos isso. Fiz a representação, sim, estou lembrado”, afirmou.

Machado confirmou ainda que, em fevereiro de 2006,  participou da audiência com o juiz Sérgio Moro para apurar eventuais omissões e contradições no acordo de delação premiada homologado em 2004.

O depoimento de Gerson Machado terminou de maneira tensa em razão das colocações feitas pelo advogado de Yousseff. Moro impediu que ele fizesse perguntas sobre a razão do delegado ter sido aposentado, apesar de jovem. O que se ouve é que foi por invalidez, a partir da decisão de uma junta médica. “

“Foi algum problema mental?”, questiona o advogado Antônio Figueiredo Basto.

“Está indeferido, doutor”, interrompe Moro.

O advogado diz ainda que o juiz não quer ouvir a verdade.

Sobre a divergência entre Moro e o delegado, a advogada Dora Cavalcanti diz que ele não foi justo, ao dizer que o delegado Machado estava equivocado quanto à interpretação em torno de Yousseff. 

“Além de configurar gigantesca injustiça com o Dr. Gerson Machado – que o passar do tempo mostrou estar corretíssimo em sua suspeita de que Alberto Yousseff retornou a prática de crimes, lavou o dinheiro escondido no primeiro acordo e ainda omitiu sua relação com José Janene –, a assertiva em nada minora a invencível contradição”, afirmou.

A tese da advogada da Odebrecht era que Moro não tinha isenção para conduzir o inquérito, a partir do vínculo com a delação de Yousseff em 2004, aquela que selou o inquérito do Banestado — um caso de gigantesca lavagem de dinheiro, ocorrida principalmente nos anos de Fernando Henrique Cardoso como presidente.

“Na ocasião, Vossa Excelência estabeleceu com o delator uma incauta e explícita relação de confiança (como se esta fosse possível), manifestando em sua homologação que, ‘tendo em vista a cooperação do acusado para com este Juízo, resolvo, por ora, suspender temporariamente as ordens de prisão preventiva exaradas nos Processos nº 2003.70.00.056661-8 e nº 2003.70.00.066405-7. No entanto, observo que esta suspensão se faz em confiança ao acusado e que será ela restabelecida de imediato caso o acusado não se mostre digno dessa confiança’”.

Como se sabe, Yousseff jogou o acordo no lixo ou, como diz a advogada Dora, talvez dele tenha se aproveitado para tirar seus concorrentes do mercado (com a delação de Yousseff, outros operadores do mercado paralelo foram condenados).

“Vossa Excelência declarou suspeição por motivo de foro íntimo. Ora, é cediço que ‘motivo íntimo é qualquer motivo que o juiz não quer revelar, talvez mesmo não deva revelar’, mas o peticionário já afirmou poder imaginar a aversão interna gerada pela traição do delator ao avençado com Vossa Excelência, sentimento que não passa assim, da noite para o dia… Yousseff, conforme afirma Vossa Excelência, voltou a delinquir”.

E, segundo o delegado Gerson, saiu do acordo celebrado com Moro com 25 milhões de dólares escondidos.

Na série sobre a Lava Jato que o cineasta José Padilha está realizando, o delegado de Londrina aparecerá no caso, segundo ele mesmo contou em entrevistas. A Gérson Machado, estaria sendo reservada a representação de pai da Lava Jato. Nas entrevistas, ele conta que se afastou do caso em 2009, por excesso de trabalho em Londrina.

O delegado Igor Romário de Paula assumiu a investigação no lugar de Gérson Machado

Não é o que mostram os documentos do inquérito. Em um ofício enviado à Corregedoria da Polícia Federal, em junho de 2009, um delegado que é apontado na própria PF como da confiança de Moro, comunica que assumiu a investigação e, entre os motivos alegados, não está o excesso de trabalho em Londrina.

Ele elenca três razões:

1) Trata-se de setor com conhecimento específico na matéria investigada;

2) Tramitação do procedimento perante a 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba/PR, dificultando a movimentação dos autos e fragilizando seu sigilo;

3) Necessidade de preservar ao máximo o sigilo das investigações, tendo em vista que a maioria dos investigados possui domicílio em Londrina/PR.

“Cabe ressaltar que este procedimento fora adotado com o conhecimento prévio do Senhor Juiz Federal Sérgio Fernando Moro”, escreveu.

Algum tempo depois, examinado por uma junta médica, o pai da Lava Jato foi aposentado. Em uma entrevista ao Estadão, Machado disse:

“Eu dizia haver indícios fortes que Yousseff estava mentindo e ele negava, falava para o Ministério Público e para o doutor Sérgio Moro que eu estava perseguindo ele. Eu falava que não era perseguidor, mas que era persecutor. Policial não faz perseguição, faz persecução. Fiquei indignado porque fui acusado de arbitrariedades.”

As acusações de Yousseff, segundo ele, o fizeram deixar o emprego. Gerson disse que foi afastado das investigações, afundou na depressão e acabou sendo aposentado aos 49 anos.

“Quando penso nisso fico indignado. Mas que bom que os colegas de Curitiba são muito bons e comprovaram que eu estava no caminho certo”, disse ele, ressaltando que admira o trabalho de Moro.

“Fui aposentado em 2013 e em 2014 veio a operação, né? Foi um alento.”

Gerson já estava afastado da investigação desde 2009.

A Lava Jato tem um enredo muito mal explicado, mas o capítulo do delegado Gerson Machado talvez seja o mais nebuloso.