Como vive uma faxineira na Suécia. Por Claudia Wallin, de Estocolmo

Atualizado em 3 de junho de 2015 às 8:40
A faxineira Beata e seu BMW 325 conversível
A faxineira Beata e seu BMW 325 conversível

Por Claudia Wallin, de Estocolmo. Claudia é autora de Um país sem excelências e mordomias, no qual retrata a vida pública na Suécia.

A polonesa Beata Romanowicz é a minha ajudante providencial das faxinas quinzenais, mas nem sempre está a postos. Nos finais de semana, ela costuma desaparecer como um Aécio em dia de manifestação pró-impeachment. É quando Beata e o marido, o pedreiro Jacek, saem para passear e pescar no arquipélago sueco a bordo do barco do casal, um confortável Bayliner americano de dez metros de comprimento.

Nos dias em que vem trabalhar, ela chega em minha casa ao volante de um BMW 325 conversível. Mas como qualquer habitante desta terra gelada, Beata também sofre de uma aguda síndrome de girassol que a faz jogar-se em um vôo promocional para destinos ensolarados, a cada vez que os termômetros caem demais e o orçamento permite. Em janeiro, auge do inverno sueco, ela escapou para a ilha espanhola de Tenerife ao lado do marido.

Decidida a revigorar o espírito com novas emoções, Beata já me pediu para anotar na agenda os dias em que estará com Jacek em Nova York, em setembro.

Beata é parte de um fenômeno relativamente novo na Suécia: o surgimento de diaristas para a limpeza doméstica. Elas foram chegando aos poucos, vindas principalmente da Polônia, quando a entrada do país na União Européia em 2004 eliminou as fronteiras com o continente.

A chegada gradual das diaristas alimentou, de imediato, um intenso debate em torno de uma das igualitárias máximas suecas – “man måste ta hand om sin egen skit”, ou “cada um deve cuidar da sua própria sujeira”.

Na Suécia, empregada doméstica que dorme no emprego é como uma fábula de mau gosto, e simplesmente não existe. Entre os suecos mais radicais, o zelo pela igualdade e o medo do ressurgimento de uma subclasse social chega a provocar reações exaltadas. Em um debate da campanha eleitoral de 2006, flechas voaram contra a então líder do Partido de Centro (Centerpartiet), Maud Olofsson, quando ela defendeu a introdução de abatimentos fiscais para permitir aos suecos contratar faxineiras e aliviar assim sua dupla jornada.

”E quem limpa o banheiro da empregada?”, perguntou, irritado, o jornalista e mediador do debate na TV4 sueca, Göran Rosenberg.

”E quem pinta a casa do pintor?”, retrucou Maud, rápida no gatilho. ”A faxineira também pode contratar ajuda quando precisar”, argumentou ela.

A coalizão de Maud venceu as eleições e a contratação de faxineiras foi facilitada, mas não é pequeno o número de suecos que ainda se sentem constrangidos ao contratar uma diarista. Ou que simplesmente recusam-se a ter alguém limpando a sua sujeira – como é o caso dos meus sogros, que aos 81 e 84 anos de idade continuam cuidando da faxina, lavando a roupa e polindo as janelas da casa. Diaristas na Suécia, aliás cuidam rigorosamente apenas da faxina: não lavam roupa, não cozinham, e raras são as que aceitam manejar o ferro de passar.

O cúmulo do contrangimento, para uma amiga sueca que esteve conosco em Búzios certa vez, foi descobrir que a casa que alugara incluía os serviços de uma empregada doméstica em tempo integral.

“Claudia, a empregada me perguntou o que ela deveria fazer para o almoço”, disse Åsa, que é editora-chefe da maior revista feminina da Suécia, em um telefonema aflito para o meu celular.

“E daí?”, perguntei.

“Fiquei envergonhada, então perguntei à empregada o que é que ela gostaria de comer hoje”, respondeu Åsa, naquele diálogo sobrenatural.

Beata relaxando
Beata relaxando

Mas aos poucos, diaristas como Beata Romanowicz vão quebrando em parte este tabu nacional, e agências suecas de serviços de limpeza doméstica também já vão surgindo. Um dos argumentos favoritos para se livrar da culpa é o de que, ao contratar os serviços de uma faxineira, está-se também ajudando uma pessoa a ganhar a vida.

Beata ganha, de fato, a vida. Como funcionária de uma agência de diaristas administrada por uma polonesa, ela tira por mês entre 20 e 25 mil coroas suecas, o que equivale aproximadamente a uma quantia entre 7.400 e 9.300 reais. Trata-se de um valor um pouco abaixo da média salarial na Suécia, que é atualmente de 27,3 mil coroas suecas.

Depois de pagar cerca de 30% em impostos, ela tem no bolso o equivalente a entre cerca de 5,2 mil e 7,8 mil reais. Uma quantia mediana, para viver em uma das cidades mais caras do mundo.

“Eu jamais conseguiria ganhar na Polônia o que ganho aqui na Suécia, e ter as mesmas condições de vida”, diz Beata, que chegou à capital sueca há oito anos.

A vida de Beata ficou melhor quando ela conheceu o marido, o pedreiro Jacek Romanowicz, pela internet. Jacek já havia desembarcado em Estocolmo muito antes, determinado a ter uma vida mais digna.

Na Polônia dos anos 80, naquele dia em que completava 38 anos, Jacek resolveu dar um basta na vida subterrânea que levava como operário de uma mina de carvão da cidade de Katowice, no sul do país – por acaso, o mesmo lugar onde Beata nascera.

“Meu sonho era poder comprar um carro”, ele lembra.

“Naquela época, foi muito difícil conseguir os papéis para entrar na Suécia. Mas um dia eu consegui”.

De ajudante a mestre de obras, Jacek trabalhou em dezenas de construções e reformas em Estocolmo. Aprendeu o máximo que podia, especializou-se no ofício de pedreiro através de cursos profissionalizantes oferecidos gratuitamente pelo Estado, e há oito anos conseguiu dar o salto que planejava: criar a própria microempresa de pequenas obras, onde emprega três ajudantes.

Jacek diz que fatura em média cerca de 500 mil coroas suecas por ano (aproximadamente 186 mil reais) – mas boa parte dos ganhos é taxada pelo leão sueco. Ele explica:

“Se eu ganhar até 420 mil coroas por ano, pago 30% em impostos. Se o faturamento anual ficar entre 420 e 550 mil, a taxa de imposto sobe para 50% do total de rendimentos acumulados nesta faixa. E o que eu faturar acima de 550 mil coroas, é taxado em 60%”, ele calcula.

Com o marido, em casa
Com o marido, em casa

Jacek banca ainda os encargos sociais dos três ajudantes, que têm seus salários atualizados de acordo com os acordos coletivos da categoria – o poderoso Byggnadsarbetarförbundet, o sindicato sueco dos trabalhadores de construção, o intima a oferecer uma vida digna aos seus operários, como ele próprio teve antes de se tornar um microempresário do ramo.

Dependendo do ano, ele fatura menos, ou mais.

“Em 2013, paguei cerca de 500 mil coroas em impostos”, conta Jacek.

É uma conta alta demais?

“Acho que é muito. Todo mundo na Suécia paga impostos altos. Na Polônia paga-se bem menos. Mas é melhor aqui na Suécia”.

Por quê?

“Porque aqui as oportunidades são maiores, pode-se ganhar mais. A vida também é mais tranquila, porque na Suécia existe pouca corrupção e pouca violência. E aqui o trabalho de qualquer pessoa é respeitado, não importa se uma pessoa trabalha como médico, pedreiro ou faxineira”, ele diz.

Beata concorda, com um movimento de cabeça. Como ainda luta para aprender melhor o esfíngico idioma sueco, ela pede a Jacek para ajudar na tradução.

“A vida aqui é mais digna, e 100% melhor do que na Polônia”, ela diz. “Lá ninguém respeita a profissão de faxineira, que é considerada um trabalho de segunda classe.”

Juntos, Beata e Jacek dividem uma casa de dois andares e 90 metros quadrados em Snösätra, subúrbio ao sul de Estocolmo. O imóvel foi adquirido no sistema de bostadsrätt – literalmente, “direito à moradia” em imóvel pertencente a uma cooperativa de proprietários, que é o sistema predominante na Suécia. Pela cota mensal de serviços e manutenção cobrada para o imóvel, o casal paga seis mil coroas suecas (equivalente a cerca de 2,2 mil reais).

Na garagem, está um carro provavelmente melhor com o que sonhava Jacek nas profundezas da mina de carvão de Katowice – um utilitário SsangYong Kyron 2.7, equipado com motor turbodiesel da Mercedes-Benz. Na vaga ao lado, fica o BMW que ele deu de presente a Beata há dois anos, quando ela completou 45 anos de idade.

Ao lado de Jacek, Beata também conquistou seu lugar ao sol, ou melhor dizendo, seu lugar sob o carregado céu cinzento dos longos invernos suecos. Antes de se mudar para Estocolmo, ela tinha deixado a Polônia para trás a fim de tentar uma vida melhor na Escócia, trabalhando como arrumadeira em um hotel da cidade de Glasgow. Levou junto com ela a filha Patricia, e lá ficou durante quase dois anos. Patricia tem agora 27 anos de idade e trabalha no mesmo hotel que Beata limpava – mas como funcionária da administração.

Como faxineira na Suécia, Beata tem direito aos mesmos hospitais públicos de qualidade que atendem empresários, deputados, vereadores, médicos, policiais e lixeiros, nesta cidade onde só existe um hospital particular para consultas – e no qual não há serviços de emergência.

Beata viaja nos mesmos limpos e organizados ônibus e trens onde circulam o presidente do Parlamento e os ministros da Suprema Corte sueca. Frequenta cafés e restaurantes do centro da cidade, como seus patrões e patroas.

Na Suécia, a faxineira Beata não é, enfim, uma cidadã de segunda classe.

O que me faz lembrar um amigo sueco dos meus primeiros tempos de Suécia, que foi uma das minhas primeiras referências sobre a consciência social dos escandinavos.

Ele pagava a uma agência de diaristas quase o dobro do que eu gastava com os serviços da minha faxineira, uma brasileira recém-chegada ao país e ainda sem registro de trabalho. Quando sugeri dar a ele o número de telefone da diarista, ele recusou a oferta, com um sorriso educado. E quando abriu a boca, me fez passar por um dos muitos vexames que já passei e ainda vou passar na vida:

“Se eu pagar uma faxineira no black, ela não vai poder ficar doente, porque não vai ter acesso aos serviços de seguridade social. Também não vai poder envelhecer com tranquilidade, porque não terá direito a uma aposentadoria pública. É por isso que eu prefiro pagar mais.”