David Miranda: um perfil do ativista que enfureceu João Roberto Marinho. Por Leo Mendes

Atualizado em 30 de abril de 2016 às 17:00
Com Glenn: conversas em português, brigas em inglês
Com Glenn: conversas em português, brigas em inglês

David Miranda é um homem de sorte.

Seus olhos brilham por amores intensos, cada vez que ele fala sobre os 15 cachorros que tem em sua casa na Gávea, no Rio de Janeiro, e sobre Glenn Greenwald, o jornalista americano com quem é casado há 11 anos.

David é um homem dedicado à família e às lutas.

Seu embate mais recente foi com João Roberto Marinho, o poderoso herdeiro da Rede Globo, chefe do clã das mídias familiares, príncipe das muitas afiliadas, a quem David chama de Joãozinho.

Joãozinho escreveu uma carta malcriada ao The Guardian, que publicou dois artigos em que David explica para a audiência internacional como a Globo e a plutocracia brasileira trabalham pelo golpe.

O herdeiro do Grupo Globo (antes Organizações Globo) garantiu que as empresas de mídia da família são imparciais na questão do impeachment, que está previsto na Constituição e zzz…. O Guardian ficou com preguiça. O texto de Marinho foi publicado na seção de comentários, segundo David, pelo humor britânico. “A Globo é suja. E o que eles mais tem medo é da democratização da mídia. Que a mídia no Brasil passe a servir a interesses democráticos, construídos de baixo para cima, e não por alguns poucos herdeiros.”

Encontrei David na Casa da Juventude, espaço de cultura e luta social que ele ajudou a criar, na Pedra do Sal, berço do samba e símbolo da resistência dos negros no Rio de Janeiro, que chegavam ao antigo cais ali perto como escravos.

David é negro, filho de uma prostituta que morreu quando ele tinha 5 anos e vivia na favela do Jacarezinho. Nunca conheceu o pai, morou com uma tia faxineira e mãe de 6 filhos até os 13 anos, quando parou de ir à escola e saiu de casa, nas palavras dele, para ganhar o mundo.

Dormiu na rua algumas noites e começou a trabalhar como engraxate. Aos 19, era atendente de telemarketing e morava com dois primos na favela do Rato Molhado, em Inhaúma, zona norte do Rio.

Gostava de ler livros do Paulo Coelho, que conseguia baratinho em um sebo no Largo da Carioca. “É autoajuda, mas eu passei por muita coisa, ajudou bastante”. Hoje diz que gosta de ler Nietzsche e outros clássicos da Filosofia, mas continua fã de Paulo Coelho. “Também sou bruxo, de religião pagã”.

Em maio completa 31 anos e é pré-candidato a vereador pelo PSOL, nas eleições de outubro.

Conheceu Glenn em 2005 na praia de Ipanema, na altura da Farme de Amoedo, um famoso território ocupado há décadas por LGBTs, que se estende do mar pelos bares e restaurantes da rua até a Lagoa.

Várias bandeiras do arco-íris são vistas na areia desde cedo, e é fácil perceber também que por ali homens gays são maioria.

David jogava futevôlei quando foi buscar uma bola e encontrou Glenn pela primeira vez. Não falavam um idioma em comum, mas conseguiram se entender tão bem que poucos meses depois estavam casados pelas leis brasileiras, mais avançadas na época do que as dos Estados Unidos.

Hoje brigam somente em inglês. Conversam em português, mas brigas são em inglês porque é mais fácil para Glenn, segundo David. Glenn demorou mais para aprender português do ele o inglês. “É óbvio que ele vai dizer o contrário”.

Gleen era advogado e queria ser jornalista. Recém-casados, viviam em um modesto apartamento em Ipanema, com as contas atrasadas, Glenn desempregado e o salário de David no telemarketing como única renda fixa. Poucos anos depois Glenn vencia os maiores prêmios do jornalismo mundial.

David se formou em Publicidade e Marketing, e ajudava o marido na luta por espaço no mercado da nova carreira. Analisava contratos, organizava palestras e debates em que Glenn o impressionava pela capacidade de convencê-lo quase sempre.

Quando Glenn viajou até a China para encontrar Edward Snowden, em 2013, David ficou no Rio de Janeiro e teve a luz de casa cortada (apesar de a conta estar em dia) e o CPF bloqueado. Nunca soube exatamente por que, mas tinha motivos e documentos confidenciais vazados de sobra para desconfiar do governo americano.

Acertara com Glenn e com o The Guardian a publicação do material exclusivo que Snowden confiou a eles, e logo em seguida já não conseguia mais contactar o marido na China. A ideia de que Glenn tivesse sido assassinado pelos inimigos de Snowden, e que o próximo seria ele, teimava em o assombrar.

“Não podia ir pra casa de ninguém porque sabia que eles teriam como me encontrar, e então matariam também quem estivesse comigo. Entrei em paranoia total, passei a noite sem luz, esperando que viessem me matar, foi a pior noite da minha vida.”

Os olhos de David se enchem de lágrimas, as mãos ficam trêmulas, e ele lembra o reencontro na manhã seguinte com “o amor da minha vida”.

Meses depois David foi detido por 9 horas no aeroporto de Londres pela polícia britânica, sob suspeita de terrorismo.

“Lembrei de Guantánamo, que poderia ser enviado pra lá a qualquer momento e passar anos preso acusado de ser um terrorista, mesmo sem absolutamente nada que me incriminasse. Dois dias antes de eu ser detido em Londres, a Casa Branca já sabia que isso iria acontecer, está documentado. Foi tortura o que eles fizeram, para tentar nos intimidar. Não conseguiram.”

Se ganhou o mundo, como queria ao sair da favela do Jacarezinho aos 13 anos, pode-se dizer que sim. Mas de férias na Europa, depois de uma semana, disse que o que mais queria era voltar pra casa. “O que eu mais gosto é de ficar com o Glenn e com os meus cachorros.” Decidiram também adotar um filho, que esperam para esse ano. Por enquanto um só, mas podem querer mais, David me diz quando eu lembro o número de cães.

São um casal de sorte e de lutas, belos e do lar. Sob as bençãos de deuses pagãos e profetas do amor, ajudaram a desmascarar a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos para o mundo. Fazem agora o mesmo em relação à mídia plutocrática brasileira, liderada por Joãozinho.