E Lula falou… Por Ignacio Godinho Delgado

Atualizado em 7 de março de 2016 às 11:30

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O texto abaixo foi escrito por Ignacio Godinho Delgado, Professor Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), nas áreas de História e Ciência Política, e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia-Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT-PPED). Doutorou-se em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1999, e foi Visiting Senior Fellow na London School of Economics and Political Science (LSE), entre 2011 e 2012.

A prisão de Lula é o clímax do enredo projetado pela articulação golpista que atua desde o final de 2014, reunindo segmentos partidarizados, de direita, da PF e do Ministério Público, sob direção das Organizações Globo, contando com o apoio tático de outros órgãos de imprensa. Não se sabe, até o momento, se sexta-feira, 04/03, estava previsto como o dia D ou um teste, dado o desconcerto que parece ter havido na condução da operação.  Assim, apesar da preparação e do calendário, algo não funcionou a contento.

Uma das possibilidades apontada por muitos comentaristas é que, talvez, Moro tenha medrado na hora mais escura, ao não conduzir Lula para Curitiba. Com isso, criou-se uma situação inesperada. Foi dada a Lula a oportunidade de falar. Não fazer mais um pronunciamento para blogs independentes ou para as plateias constituídas em eventos do PT ou dos movimentos sociais brasileiros. Lula falou em rede nacional, pela TV aberta, algo que só acontece espaçadamente, durante os horários eleitorais gratuitos. Mas como poderia a Globo negar-se a transmitir sua fala, dada a sequência dos acontecimentos desta sexta-feira, programada inicialmente para ser um dos momentos culminantes da ação golpista?

Ao falar, através da TVT, para todo o Brasil, por força de uma configuração contingente de acontecimentos, Lula se aproveitou de uma rara brecha de luz no espesso nevoeiro do sistema de comunicações brasileiro. Embora subsista como um tema de debate praticamente interditado em fóruns mais amplos e, até o momento, condenado à esfera da não decisão, a regulação da mídia no Brasil, em contraste com diferentes arranjos, nos EUA e na Europa, não estabelece, para valer, qualquer limite à oligopolização dos meios de comunicação, com enormes prejuízos ao debate político pluralista e à expressão da diversidade regional e cultural do país.

É com esta condição que, sem papas na língua, Judith Brito, da Associação Nacional de Jornais (ANJ), pode afirmar, em 2010, que a mídia brasileira atuava como partido de oposição, dada a inoperância que via na oposição partidária convencional. No mesmo diapasão, a Rede Globo pode excluir qualquer imagem de Lula de seus noticiários, durante quase todo o ano de 2010, apesar de sua condição de presidente da República. Isso apenas para lembrar alguns fatos ilustrativos do que é a mídia brasileira.  Exemplos outros, há aos borbotões.

Por um breve momento, Lula rompeu esta cortina de ferro.

Não obstante o alcance da pesquisa divulgada pela Vox Populi sobre as percepções dos brasileiros em relação aos episódios de sexta-feira, 04/03, seus resultados corroboram a impressão obtida nas ruas e nas redes sociais, ao longo da tarde daquele dia. Conforme a Vox Populi, de 15000 entrevistados, 88% ouviram Lula (63% integralmente), 57% acreditam em sua inocência das acusações da Lava Jato, e 65% condenaram a “condução coercitiva”, a que foi submetido pelo Comandante Moro, para depoimento no Aeroporto de Congonhas.

Os blogs independentes no Brasil têm atuado com denodo para furar o bloqueio da mídia. Mas seu alcance é ainda reduzido, se comparado ao peso que ainda dispõem os veículos tradicionais, especialmente a TV Globo, mesmo com sua importância decrescente, dado o advento da internet. Expressão mais execrável da parcialidade e manipulação da mídia brasileira, o Jornal Nacional ainda pesa de forma significativa na definição das agendas de conversa de uma parcela relevante de brasileiros, embora com descrédito crescente. As Organizações Globo, por seu turno, têm afinidades com outros órgãos e peso central na indicação do rumo tomado por seus parceiros, especialmente os jornais Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, além das revistas semanais.

O advento da internet, de todo modo, prenuncia uma mudança importante no papel e no peso da mídia tradicional. Por isso, num quadro de desespero, pela perspectiva de erosão definitiva de sua influência e receitas, tal mídia definiu para si uma cruzada – a derrubada do governo Dilma e a execração do PT e Lula – na esperança de contar com governos ainda mais generosos, que contenham sua derrocada. Nessa cruzada, liberou a besta fascista, criando uma atmosfera inaudita de intolerância, que cindiu o Brasil, na caçada incruenta ao inimigo do povo: o petista.

Registre-se que não se trata aqui de buscar desculpas pelos erros do PT, notadamente a adaptação do partido às práticas que se associam ao financiamento empresarial das campanhas eleitorais, que favorece a ocorrência de processos de corrupção nas relações entre agentes públicos e empresas. Se o propósito da mídia, contudo, fosse combater este problema, buscaria um tratamento equilibrado dos casos que envolvem os diferentes partidos, o que contribuiria para o debate de arranjos institucionais capazes de minorar a ocorrência da corrupção. Qualquer mirada no espaço, no tempo e na abordagem, nos jornais e TVs, dedicados aos episódios de corrupção, atribuídos a pessoas ligadas ao PT e aos que aparecem associados a outros partidos, em especial o PSDB, revela que tal disposição “republicana” está longe de orientar a atuação da mídia brasileira.

Boa parte dos órgãos de mídia no Brasil pertence às mesmas famílias que montaram o cerco a Vargas, culminando com seu suicídio, em 1954, e participaram da ação golpista que derrubou o governo de Jango, em 1964. Da mesma forma, desde 2005 vêm combatendo de forma sistemática o governo do PT, não com os propósitos e os métodos próprios do jornalismo, mas operando como o partido de oposição, assinalado na menção a Judith Brito, acima. Para o exercício desse papel, não tem faltado o uso da sedução, através de prêmios e espaços nos jornais e na TV, ou do constrangimento, por via dos bombardeios a reputações e de um noticiário parcialíssimo, mirando a adesão ou o acoelhamento de políticos, no Legislativo e no Executivo, e de membros do Judiciário.

Afinados com a estratégia traçada por Moro na Operação Lava Jato, na qual a pressão dos meios de comunicação é tomada como fundamental na criação de um clima favorável à condução das investigações e à obtenção de confissões, a mídia brasileira avançou em seus propósitos. Não basta mais atuar como partido de oposição. Após quatro derrotas consecutivas da direita, insolvência à vista, sua operação, hoje, é abertamente conspirativa, valendo-se dos vazamentos de delações premiadas da Operação Lava Jato, cirúrgicos em sua ocorrência, num roteiro, e mesmo um calendário, que é seguido de forma escancarada. Nunca antes nesse país banalizou-se tanto a ação golpista.

Mas Lula falou. Que fale mais. Que se multiplique o alcance dessa fala. Que ela consiga, de fato, animar a resistência ao golpe. Assim, quem sabe, um dia, a democratização dos meios de comunicação irrompa na agenda nacional e permita o reencontro do país com suas várias expressões, num ambiente de tolerância e respeito à diversidade.