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Haddad: esquerda “nunca conviveu com uma situação tão adversa”

Da Folha:

O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT-SP) afirma que a esquerda brasileira nunca conviveu com uma situação “tão adversa” como a atual. Para ele, a polarização brasileira se dará, nos próximos anos, entre a direita e a extrema direita.

Derrotado por João Doria (PSDB-SP) na eleição municipal, ele diz que se dedicará agora a “reorganizar a vida”, mas sem deixar o “debate nacional”. Leia os principais trechos da entrevista, concedida dias depois da vitória do republicano Donald Trump à Presidência dos EUA:

Folha – Há uma onda conservadora no mundo e no Brasil?

Fernando Haddad – Não dá para entender o Donald Trump sem entender o que foi a globalização. O que seus ideólogos defendiam? Que ela significaria a distribuição do welfare state [Estado de bem estar], que uma parte do bem estar do núcleo orgânico do sistema seria socializado.

Isso atingiria inclusive o Brasil. Essa era uma tese do [ex-presidente] Fernando Henrique Cardoso, por exemplo. Mas o que de fato aconteceu? O capital se internacionalizou de uma maneira inteiramente nova.

Eu [empresa] produzo a sola do [tênis] Nike no Vietnã, o cadarço no Camboja, monto em Manaus e exporto para a Europa. Só que quem fica com o superlucro é a marca Nike. Não são os trabalhadores, como se poderia imaginar.

A força de barganha diminui.

A base nacional da legislação e da organização sindical se esfarelam. E o capital passa a superexplorar a força de trabalho. Sobretudo no Sudeste asiático, que se industrializa com base na mão de obra barata, de pessoas que trocavam 12 horas de jornada por um prato de arroz.

A globalização significou ainda a desregulamentação dos mercados financeiros.

Em 2008, duas coisas se combinam: crise financeira com a explosão das bolhas na Europa e nos EUA.

O centro nervoso do sistema é atingido. Os trabalhadores de seu núcleo orgânico já sentiam os efeitos da desindustrialização pelo aumento da competição asiática. Mas, a partir de 2008, passaram a sentir na pele, como nunca.

Essa combinação começa a explicar a emergência da direita nos EUA e na Europa.

Trump é só um elemento a mais de reação da classe trabalhadora tradicional, europeia e americana. Que dá sustentação a Marine Le Pen, na França, ao Brexit [saída do Reino Unido da União Europeia], a grupos radicais na Alemanha e na Áustria.

Nos EUA não há desemprego, por exemplo. Ao contrário.

Mas você tem a precarização [do trabalho], sobretudo no nordeste, que era uma das regiões de base industrial nos EUA. Ele sucumbe.

E você tem a emergência de forças ultraconservadoras de viés nacionalista, com a classe trabalhadora tradicional reagindo aos efeitos deletérios da globalização pela direita. Hoje a disputa, em escala global, inclusive na periferia do sistema, se dá entre a direita e a extrema direita.

E no Brasil?

A América Latina pegou um atalho interessante. A expansão do sistema abriu um ciclo de commodities e de crescimento que se combinou com a democratização da renda por governos que, sucedendo os militares, emergiram com discurso muito favorável ao combate à desigualdade.

E o Brasil conseguiu cumprir com certos princípios da Constituição de 1988, que foi o ponto alto a Nova Republica, que durou de 1985 a 2016.

A Nova República terminou. Vivemos hoje o começo de uma segunda República Velha, como deseja o establishment. [Irônico] Essa farra aí, de direitos, acabou. Vamos voltar ao padrão primário exportador do começo do século passado.

Como o país chega a essa crise tão aguda?

Com a crise de 2008, o ciclo de commodities teve que acabar. As economias centrais dependiam de matéria prima barata para recuperar seu dinamismo. A decisão da Arábia Saudita [de aumentar a produção de petróleo, fazendo o preço despencar] é política. Ela joga com os EUA.

Com o fim do ciclo das commodities, começa a crise na periferia, em governos [da América Latina] de matriz econômica cujas bases não são mais sustentáveis. Isso explica parte da crise do governo Dilma [Rousseff]. Obviamente não explica tudo.

E o que mais explica?

A leitura completamente equivocada do governo e do PT sobre [os protestos] de 2013. Ela foi a de que tínhamos garantido o pão e que o povo tinha saído às ruas para pedir a manteiga. Essa expressão eu ouvi, na época, de alguém muito importante.

Do Lula?

[risos]. É. Eu ouvi do Lula. E eu disse para ele “não é isso o que está acontecendo”.

Nós tínhamos dez anos de crescimento real do salário, a menor taxa de desemprego, inflação relativamente controlada. Não tinha elementos para o povo estar na rua.

A não ser pelo componente psicológico de perda de poder e status relativos das classes médias tradicionais, espremidas entre ricos cada vez mais ricos e pobres menos pobres.

Elas que lideraram aquele processo. E já começava o fim do ciclo de commodities. O resultado foi uma crise institucional com a radicalidade que a crise política impôs.

A leitura errada se traduziu em medidas equivocadas?

Dilma acreditava realmente que essa crise era temporária. E os ajustes que a economia precisava foram sendo adiados. Quando se confirma o diagnóstico contrário, ela dá um cavalo de pau. Imaginando que em 2018 a economia voltaria a crescer.

E dá tudo errado.

Dar um cavalo de pau pressupõe que você tem base parlamentar. Ela não tinha. A popular, perdeu. A classe média tradicional ganhou as ruas e aí nós promovemos algo que não está na Constituição: o tal do impeachment sem crime de responsabilidade.

O que foi esse casuísmo? A Constituição prevê a intervenção do Estado no município, do governo federal no Estado, mas não a do Congresso no executivo. Pois foi exatamente o que aconteceu.

E o que nós temos hoje é um governo de intervenção, com os seus atos institucionais. A PEC 241/55 [do teto de gastos] é o ato institucional número 1 do novo regime.

O pressuposto é o seguinte: qualquer aumento quantitativo dos serviços públicos, qualquer melhora qualitativa, e o enfrentamento da questão demográfica, do envelhecimento da população, vão ter que ser enfrentados com o aumento de produtividade do serviço público.

A conta não vai fechar.

(…)