Fomos ao interior de Santa Catarina conversar com o pai de Rodrigo Gularte

Atualizado em 28 de abril de 2015 às 9:27
Rodrigo, na cela da Indonésia em 2005, fotografado por Renan Antunes de Oliveira
Rodrigo, na cela da Indonésia em 2005, fotografado por Renan Antunes de Oliveira

Publicado originalmente em fevereiro de 2015.

 

O reporter Renan Antunes de Oliveira foi, há dez anos, à Indonésia, para entrevistar Rodrigo Gularte, que fazia pouco tempo fora condenado à morte. Agora, Renan foi à pequena Imbuia, município de 5 000 habitantes de Santa Catarina, para ouvir o pai de Rodrigo, o médico Rubens Gularte, de 77 anos.

Foi uma conversa rápida, e sem foto. Rubens não se deixa fotografar, e a cidade como que o protege de jornalistas de fora. Mas, mesmo breve, o encontro durou o bastante para Renan ver nos olhos do médico a dor de quem tem um filho na iminência de enfrentar, num país distante, um pelotão de fuzilamento.

Abaixo, o relato de Renan:

Em dezembro, discretamente para não assustar a família, o Itamaraty ofereceu um passaporte diplomático para o médico Rubens Borges Gularte, caso ele decida visitar o filho Rodrigo na Indonésia pela última vez. O pai não aceitou a oferta.

Rodrigo é todo responsabilidade da mãe, dona Clarisse Muxfeldt. É admirável a luta dela para salvá-lo do iminente fuzilamento.

Os recursos legais fracassaram. Os pedidos de clemência ao presidente indonésio foram negados. Ela apelou ao papa Francisco e vai esperar por um milagre até darem o tiro nele – o governo já anunciou que a execução será em fevereiro.

A ONU, a Anistia Internacional e defensores de direitos humanos do mundo todo também lutam por ele.

Mas, se tanta gente se preocupa, por que o pai não quis sequer ir vê-lo ?

Rodrigo, de 42 anos, não era um criminoso de carreira, apenas um viciado usado como mula por traficantes. Ainda pode virar mártir desta batalha contra a pena de morte.

É quase unânime o repúdio à dura sentença para o crime relativamente pequeno de traficar 6 kg de cocaína que ele cometeu – cometeu, confessou e se arrependeu.

Uma prima de Rodrigo, Juliana, disse no Fantástico que “Rodrigo adoeceu com a separação dos pais”. Ele teria perdido “o sonho de uma família normal, com pai, mãe e irmãos”. Seu “coração doente” teria “piorado com o uso de drogas” até chegar ao fundo do poço, a esquizofrenia, manifestada nos 10 anos de prisão em cadeias nos cafundós da Ásia.

Seria o pai do tipo ausente a vida toda ?

Rodrigo não teria dele referências pra certo e errado ?

Por que até agora o pai nunca apareceu na luta pelo filho?

Desde que o filho foi preso em 31 de julho de 2004 no aeroporto de Jacarta, o doutor Rubens fez a mesma coisa, todos os dias, sem nunca dar entrevista pra ninguém: trabalhar num hospital público, atendendo de graça.

Ele se separou da milionária Clarisse quando Rodrigo ainda era criança, nos anos 80. A mãe foi morar com o menino num amplo apartamento em Curitiba, onde ele tinha uma confortável suíte.

O pai foi primeiro para Benedito Novo, nos grotões de Santa Catarina, onde conheceu Cátia, 25 anos mais nova e já mãe de um menino.

Com a segunda família, mudou-se para Imbuia, lá no alto da serra onde se acumulam as águas para as enchentes terríveis do Vale do Itajaí.

 

A pequena Imbuia como que protege o pai de Rodrigo
A pequena Imbuia como que protege o pai de Rodrigo

 

Como foi que Rodrigo lidou com a separação dos pais? Como era com a madrasta e com o irmanastro ?

E como o pai o tratou depois de separado ?

Em busca das respostas, na semana passada fiz quase 400 km de Floripa até a casa do doutor Rubens. O prefeito Antônio Laurindo me descreveu um santo. Nas ruas, é superconhecido e o povo o venera.

Na cidade de 5 mil habitantes ele fez os partos de três gerações. Trabalha no hospitalzinho local há 27 anos. Aposentado, retornou ao trabalho com um salário de médico cubano.

Raramente tira férias e atende pacientes a qualquer hora. A vida dele é o hospital e os doentes – muitos ele visita em casa. Foi gineco, fez cirurgias, hoje só clinica.

Na farmácia me disseram: “Qualquer um ficaria rico recebendo tudo que ele não cobrou dos pacientes”.

Criou o enteado como filho, hoje um advogado bem-sucedido, que se dá bem com o padrasto: “Pra mim foi um pai maravilhoso”.

Quase todos os dias ele honra suas origens gaúchas tomando chimarrão com amigos no posto Goedert – some nos dias de noticiário intenso sobre o caso de brasileiros presos na Indonésia.

Os companheiros da roda nunca tocam no nome do filho “em respeito aos seus cabelos brancos”. Ele é seco, reservado, não dá chance de falarem no tema.

O amigo mais próximo é Laudi. Ele garante que “o homem sofreu muito” quando o filho apareceu na TV, de jaleco laranja, cercado pela polícia indonésia, uma imagem que tem se repetido muitas vezes quando se fala no caso, com a proximidade do fuzilamento.

“É do temperamento dele não falar, o doutor é muito na dele, ninguém tem coragem de puxar no assunto”, diz Laudi.

Se um forasteiro procura por ele no posto os amigos dizem que está em Camboriu. Na rua dele, os vizinhos dizem que não sabem qual é a casa. São mentiras pra que o homem não seja incomodado.

Ele mora com a mulher numa casa espartana, ao lado do hospital.

A cidade o abraça e o protege dos curiosos. Uma repórter do Fantástico conseguiu entrar na sala dele do hospital, na sexta passada, sem o cameraman, mas a secretária chamou Cátia que apareceu em dois minutos e botou a jornalista para fora aos gritos.

Para chegar à casa dele fui por um terreno baldio e o encontrei no jardim dos fundos, solitário, ao meio-dia da quinta da semana passada.

Foi fácil reconhecê-lo porque tem a mesma aparência de Rodrigo. Aos 77, o pai só tem as bochechas mais caídas e o cabelo branco. O homem estava limpando canteiros, alheio ao mundo.

Eu me apresentei como tendo falado com o filho dele na cadeia. O efeito foi o mesmo de uma ligação de telemarketing: “Não quero falar”, disse, em voz baixa, sem levantar os olhos do canteiro, onde catava impurezas, jogando-as no terreno baldio.

O doutor Rubens parecia tão seco e reservado como disseram os amigos de mate, bem à gaúcha. Mesmo assim, senti que ele queria desabafar. Falamos amenidades, até aparecer sua mulher.
Ela tenta puxá-lo pela mão para a cozinha pela porta dos fundos, citando o Itamaraty: “Ele está proibido de dar entrevistas”, como se os diplomatas tivessem este poder.

Lembrei que quando entrevistei Rodrigo eu perguntei como era a relação dele com o pai. Na ocasião, deixei passar batido, mas agora me veio: ele nada respondeu. Era como se o pai não existisse.

Joguei a mesma pergunta para o pai. Ele nada respondeu, como se o filho não existisse.
Antes de desistir, perguntei a única coisa que me ocorreu: “Doutor Rubens, o senhor ama seu filho”?

Aí eu vi os olhos do velho médico gaúcho se encherem de lágrimas, com aquele tremor inconfundível no lábio inferior.

Entendi a emoção como um grito de sim. Muito.

Ele se recuperou em segundos.

Me estendeu a mão, em despedida. Virou as costas demonstrando toda a sua impotência e foi lamber na cozinha as feridas da perda do filho.

Fiquei na cidade ouvindo mais histórias dos dois. O retrato pintado por amigos não tinha nenhum drama muito grande, nada que outros filhos de outros pais separados não tenham vivido.

Edson, 40, filho de Laudi, conviveu com Rodrigo na adolescência em Imbuia: “Ele vinha passar longos períodos com o pai, aqui nunca teve problemas”. Ele disse que os dois sempre se deram bem.

Os amigos mais íntimos sabem da história que em 1991 Rodrigo foi preso fumando baseados em Curitiba. O pai ligou para a mãe e disse que ela deveria deixá-lo resolver sozinho o problema, mas Clarisse não concordou.

Uma vendedora que teve um namorico com Rodrigo contou que uma vez ele se queixou de Davi, o filho de Cátia, 10 anos mais moço, que seria o “menino mimado da mãe”. Mas ela não lembra de ter sido uma coisa séria: “Os dois eram amigos, mesmo com a diferença de idade, nunca brigaram, até porque Rodrigo era muito manso”.

O marido da vendedora conta que ouviu uma vez Rodrigo dizer que não gostava de Imbuia “porque aqui não tinha nem fliperama”. Outro amigo disse que lembra de ele ter dito que “nunca moraria num buraco destes”.

Um funcionário do hospital contou que quando Rodrigo foi preso em 2004 o doutor Rubens “imediatamente ficou muito doente”. Ele teria 67 anos quando contraiu um câncer, mas não foi possível saber se houve mesmo tal coincidência de datas. “Ele não poderia ter viajado quando o filho foi preso, mesmo que quisesse”.

Muitos vizinhos não lembram direito de Rodrigo, porque muito antes de se dar mal na Indonésia ele já não visitava o pai idoso.

Na roda de mate há um amigo que ouviu a maior queixa do doutor Rubens sobre o filho. Não foi nada relativo ao caso de narcotráfico. Teria sido quando Rodrigo abandonou pela primeira vez os estudos, pelos 20, sinalizando que nunca faria a medicina humanitária que o pai tanto prezava.

O amigo do chimarrão contou o episódio: “A gente estava falando do futuro dos filhos. O doutor aceita as coisas do jeito que elas acontecem. Nos disse que o filho nunca seria médico. Perguntamos, mas ele se calou, do jeitão dele. Aí me passou a cuia e só disse ‘que pena, que pena’, parecia que falava consigo mesmo, enquanto balançava a cabeça pra lá e pra cá”.

Para o pai, Rodrigo Muxfledt Gularte já era.