Com 150 mil argentinos no Rio para a Copa, passou da hora da regulação do portunhol

Atualizado em 17 de junho de 2014 às 13:11

 

Hermanos
Hermanos

 

O portunhol já foi visto de uma maneira tremendamente negativa no Brasil. Um jeito ignorante e truqueiro de se virar em espanhol. O símbolo disso era a imagem de Collor berrando na televisão, apoplético: “Duela a quien duela!”.

Depois, o técnico Wanderley Luxemburgo, em sua rápida e fracassada passagem pelo Real Madrid, encarregou-se de jogar a pá de cal. Mas o fato é o seguinte: o portunhol existe; não tem nada a ver com o Collor e o Luxa; é, sim, uma língua; e você pode orgulhar-se de se virar com ela.

De acordo com números oficiais, há 150 mil argentinos no Rio de Janeiro, fazendo as coisas que os argentinos fazem. Uma delas é não falar português. O portunhol nunca foi tão acionado.

“Na verdade, são várias línguas de fronteira, praticadas nas bordas do Brasil com os demais países da América do Sul”, me disse a portenha Maite Celada, professora-doutora de espanhol da USP. Segundo ela, o brasileiro se apropriou da língua do vizinho – e a recíproca não vem na mesma medida.

“O portunhol é uma arma absolutamente legítima de comunicação. Falando o idioma do outro, você se desloca e se transforma”. O instinto de sobrevivência do brasileiro, o famoso jeitinho, contribui para a nossa capacidade de adaptação a um ambiente hostil. Em Santiago do Chile, presenciei um diálogo em que um carioca começava falando em português e não era entendido. O chileno respondia em espanhol. E nada. Até que ambos começaram a dialogar em portunhol – e a coisa fluiu.

O portunhol ainda não tem o status de idioma ou dialeto. Ele não é estável nem homogêneo, além de depender do repertório de cada interlocutor. Mas já adquiriu uma personalidade própria. O falecido escritor paranaense Wilson Bueno lançou o romance “Mar Paraguayo” todinho em portunhol. Bueno considerava, com algum exagero, que fez pelo portunhol o que Dante fez pelo italiano – ou seja, formalizou-o literariamente.

O livro foi bem recebido em alguns países. No Canadá, houve uma tradução para o “francenglish”, a mistura do francês com o inglês.”É uma língua de errância”, contou-me Bueno. “Uma língua que se faz ao falar, ao caminhar.” Não há gramática, sintaxe, regra. Por isso, não há erro. Para quem tem autocensura baixa, ainda mais, é facílimo. Basicamente, basta trocar “v” por “b”, “o” por “lo” e “a” por “la”.

Há alguns anos, Gilberto Gil, um defensor ferrenho dessa novilíngua, declarou o seguinte: “O portunhol é uma manifestação espontânea, natural, vinda dos corpos e das almas culturais dos nossos povos”. Traduzindo ficaria assim: “Lo portuñol es una manifestación espontánea, natural, vinda de los cuerpos e de las almas culturais de los nostros pueblos”. Não sei se essa é a melhor versão. Mas dá para se virar na Calle Florida e em Copacabana.